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“A União Europeia é um patrimônio da humanidade”


Eu acredito que a União Europeia não é um patrimônio apenas dos europeus. Ela é um patrimônio da humanidade. Uma construção política que inspira muitos países a trabalhar juntos e ampliar a cooperação e integração nas suas regiões. Inspira na América do Sul, com o Mercosul e a União de Nações Sul-Americanas, e na África, com a União Africana e as comunidades econômicas regionais que trabalham para desenvolver o continente. Ela é um modelo, que pode ter falhas, mas que são inegavelmente muito pequenas diante dos feitos e benefícios da integração. É uma proeza notável que países que viveram em guerras e disputas por séculos tenham aprendido a colaborar em paz, a resolver seus problemas pelo diálogo, pela política e não pelas armas.

Talvez seja difícil perceber isso neste momento, de dentro de uma Europa que sofre com o desemprego e a perda de direitos, após anos de crise econômica, desde a quebra do Lehman Brothers, em 2008. Principalmente para uma geração que, felizmente, cresceu em uma sociedade desenvolvida, e não viveu as agruras da guerra. Mas, assim como é recomendável nos afastarmos para enxergar toda a magnitude de um grande monumento, certas conquistas são mais claras quando observadas a certa distância e com uma perspectiva temporal mais ampla.

Os direitos sociais e o padrão de vida dos europeus ainda são uma meta distante para a população da maioria dos países do mundo. O Estado de Bem-Estar Social é uma grande conquista, fruto da luta de gerações e gerações de trabalhadores. Nós, na América Latina, ainda estamos lutando para conquistar parte daquilo que vocês, na Europa, tem que lutar para defender.

Os trabalhadores, a classe média e os imigrantes não podem ser considerados os culpados de uma crise causada pela irresponsabilidade do sistema financeiro. Os bancos alavancaram demais seu patrimônio, com grandes apostas em trocas de papéis, ao invés realizar investimentos produtivos responsáveis.

Não podem ser justamente os setores mais vulneráveis da sociedade –os imigrantes, os aposentados, os trabalhadores, os países do Sul da Europa –que paguem a conta da ganância de poucos.

O brutal ajuste imposto à maioria dos países europeus – que já foi chamado de austericidio-retarda desnecessariamente a solução da crise. O continente vai precisar de um crescimento vigoroso para recuperar as dramáticas perdas dos últimos seis anos.

Alguns países da região parecem estar saindo da recessão, mas a retomada será muito mais lenta e dolorosa se forem mantidas as atuais políticas contracionistas. Além de sacrificar a população europeia, esse caminho prejudica inclusive as economias que souberam resistir criativamente ao crack de 2008, como os EUA, os BRICS e grande parte dos países em desenvolvimento.

O papel da política para a saída da crise é central. É a retomada da política, e não apenas da economia, o caminho para solucionar a crise e avançar em um projeto europeu com mais oportunidades, igualdade e justiça social. É fundamental entender e explicar para a população as origens da crise atual. É necessário renovar a política, ainda analógica, em nosso mundo digital, e dialogar com a sociedade para a identificação dos problemas e construção de novas soluções. As decisões políticas não podem ser simplesmente terceirizadas, transferidas para comissões técnicas, organismos multilaterais ou burocratas de terceiro escalão. Os papéis dos líderes e dos partidos são insubstituíveis na democracia. E se as forças progressistas não forem capazes de apresentar um discurso e representar os trabalhadores e os jovens, garantindo Avanços e oferecendo esperança, veremos, infelizmente o avanço do discurso do medo, da intolerância e da xenofobia.

Em março, tive a oportunidade de conversar em Roma com o primeiro-ministro italiano Matteo Renzi. A sua ousadia e empenho em resolver antigos impasses da sociedade italiana foi reconhecida pela população, com a forte votação recebida pelo Partido Democrático nas últimas eleições europeias. É uma demonstração clara de que é possível vencer o ceticismo com a política.
É necessário construir um novo sonho. Não uma nova teoria, mas uma nova utopia, que possa movimentar e servir de horizonte para as forças progressistas da Europa.

O mundo mudou muito nos últimos 30 anos. Mas ao invés de nivelar por baixo os direitos dos trabalhadores europeus diante da competição com os países emergentes, é necessária elevar o padrão de vida dos demais para níveis similares aos dos europeus. Precisamos de uma visão mais ampla e generosa da Europa, diante do horizonte, possível, de atingirmos a meta de um mundo sem pobreza.

Há 30 anos atrás, quando a maior parte da América do Sul vivia tempos obscuros de ditaduras espalhadas pelo continente, a solidariedade e apoio dos partidos progressistas e sindicatos europeus colaborou muito para o fortalecimento da esquerda e retomada da democracia na nossa região.

Hoje, após muitos esforços de organização popular e política, nosso continente é uma região de paz e democracia, com fortes avanços no desenvolvimento econômico e no combate à pobreza na última década.
Na América do Sul, foi a inclusão dos mais pobres que ajudou a impulsionar a economia, e uma agenda progressista de avanço de direitos sociais e trabalhistas.

No Brasil, os números que traduzem melhor o sucesso dessa estratégia de investir nos mais pobres são os mais de 20 milhões de empregos formais criados nos últimos 11 anos, as 36 milhões de pessoas que saíram da extrema pobreza e as 42 milhões que ascenderam à classe média.

Eu estou convencido de que a saída para a crise econômica mundial passa pelo combate à pobreza em escala global. Os recursos sociais não podem ser vistos como gasto, mas como investimento que um país faz em sua própria gente. Os pobres do mundo tem que deixar de serem vistos como um problema, e passarem a ser vistos como solução, tanto dentro de cada país, como de forma mais ampla, em todo o mundo.

O investimento em programas sociais, na produção agrícola e o financiamento da infraestrutura dos países em desenvolvimento, especialmente da África, poderá criar milhões de novos empregos e um novo mercado consumidor, Apesar da crise econômica mundial, a África cresce continuamente a taxas de 5% a 6% em seu PIB, abrindo espaço para a demanda por produtos e serviços sofisticados produzidos pelos países ricos e contribuindo para uma retomada sustentável da economia na Europa e no mundo.

A Europa que conseguiu renascer da devastação das guerras da primeira metade do século XX é a prova de que é possível, através da política e da democracia, melhorar a vida da população.

Na América do Sul, uma geração de líderes como Dilma Rousseff, Michelle Bachelet, Pepe Mujica e Evo Morales também conseguiram, contra todo o tipo de oposição brutal, chegar ao poder pelas vias democráticas e promover grandes avanços sociais e políticos em seus países.

Acredito que, respeitando as diferenças e trocando experiências, podemos aprender e colaborar muito, Europa e América do Sul, para avanços não só em nossos continentes, mas para a construção de um mundo mais justo e solidário.

O artigo original foi publicado pela Revista Queries. Leia a íntegra do texto em inglês: What does Europe mean to Lula?

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