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Cidade onde Che foi morto nunca mais foi a mesma

O lugar onde Che Guevara foi morto ainda tem o espectro de sua forte presença. "Se eu soubesse quem ele era, o teria ajudado a fugir", diz um dos moradores


Cidade onde Che foi morto nunca mais foi a mesma

Estátua de Che em La Higuera, na Bolívia. Foto: Lautaro Actis

Por Lautaro Actis
Da Rede Brasil Atual 

Existem lugares que por se encontrar em sítios remotos, possuir climas inóspitos ou por não ter certos serviços públicos, não são atrativos para muitas pessoas. La Higuera é um deles. Lugar onde só vai quem realmente tem um autêntico interesse em conhecer.

Chega-se lá por meio de uma longa estrada de terra, entre montanhas e sucessivas curvas. O clima seco produz sulcos tanto na pele como no chão. Chuvas? Só em um mês do ano, o mesmo mês em que se pode conseguir alguma fruta. O sol divide o dia em dois, todas as atividades ao ar livre devem ser feitas antes das 11 da manhã ou após as 4 da tarde. Energia elétrica não existe. Internet, wi-fi, sinal de telefone não são conhecidos lá. 

O povoado quase perdido no meio da nada fica a quase 2 mil metros de altitude. E ninguém o teria conhecido se não fosse pelo fato de que lá, no interior de uma escola, foi assassinada uma das personalidades mais emblemáticas do século 20: Ernesto Che Guevara.

A nova escola primária, bem como a maioria das casas e armazéns, tem murais ou grafites feitos por viajantes e ativistas sociais de todo o mundo que chegaram a essa terra. O espectro da presença de Che os faz passar várias horas em ônibus raquíticos por estradas de terra desenhadas em grandes morros que secam a pele apenas de ficar perto da janela.

Embora existam repetidas promessas de asfalto e melhorias na estrada, a viagem entre Valle Grande – a cidade mais próxima – e La Higuera duram longas três horas, onde o sol é onipresente. No caminho, algumas pequenas cidades como Pucará, autodenominada "a capital do céu", que tanto no seu escudo como no posto de polícia mostra a fotografia mundialmente famosa do homem da estrela que o fotógrafo cubano Alberto Korda tirou na Praça da Revolução de La Habana.

A 20 metros da praça da cidade está o Museu Comunitário La Higuera, construído sobre a demolida escola onde em 9 de outubro de 1967, uma segunda-feira, após receber a ordem de La Paz e de Washington, as balas do sargento Mario Terán bateram primeiro no antebraço e na coxa de Guevara para depois, numa segunda ação após o próprio Che ordenar que "apontasse bem", perfurar o pescoço do líder guerrilheiro.

O relógio marcava 15 minutos para 1 da tarde, Che está sangrando quando o sargento Bernardino Huanca entra no quarto, lhe dá um chute que o deixa com a boca para a cima e, a menos de um metro de distância, dispara direto ao coração. Uma hora antes, o tinham levado para fora dali para tirarem algumas fotos. Vizinhos do povoado têm aquela lembrança. Lá, dentro desse quarto, hoje, não há mais espaço livre nas paredes. Como se tratasse de um santuário de alguma deidade pagã, numerosas mensagens, agradecimentos, fotos, bandeiras, palavras lotam as paredes como se fosse o conhecido bar de Havana La Bodeguita del Médio.

Ninguém na aldeia ou na área sabia quem era Che Guevara. Um lugar onde até hoje não há televisão, rádio, jornais, internet, sinal de telefone, nem transporte de longa distância. As novidades do mundo não chegam nesse ponto da Bolívia. Com isso, podemos imaginar como eram as notícias há meio século.

"Se eu soubesse quem ele era, o teria ajudado a fugir" disse o senhor Florencio enquanto descemos até a Quebrada del Churo, onde Guevara foi capturado e hoje repousa uma pedra com uma estrela vermelha.

Uma das duas estradas que descem para aquele lugar atravessam a fazenda do avô que, junto com seu filho Santos, cobra 10 pesos bolivianos – cerca de R$ 5 – para quem quiser andar por 40 minutos de descida até o rio. Florêncio tinha 27 anos naquela tarde do domingo, 8 de outubro, quando o combate terminou com Che preso e teve início a caravana para o povoado passando por sua fazenda.

"Ele parecia um indigente, barbudo, sujo, magro, com roupas rasgadas e sapatos improvisados feitos com um pano". Che tinha escrito no dia 10 de setembro em seu diário: "Atravessei o rio nadando com a mula, mas perdi meus sapatos enquanto o cruzava e agora estou com uns panos, coisa que não é nada engraçada."

A caravana de soldados, depois tornados reféns ou mortos em combate, levou cerca de duas horas andando desde a Quebrada del Churo até La Higuera. À vista da população local. Dona Hirma tinha 20 anos quando a caravana passou pela porta de sua casa. Ela trabalhava como assistente da tipógrafa quando o mundo colocou seus olhos sobre seu povoado. "Começa um novo Vietnã?", se perguntava o Che em seu diário quando confirmava a intervenção dos EUA no combate.

"O povo de La Higuera estava com medo, dificilmente se encorajava a espiar de trás da porta da sua casa os estrangeiros com barba. Os militares pegavam e levavam presos a Valle Grande os camponeses que ajudavam a guerrilha com comida ou recursos", diz a senhora, dona da loja La Estrella, em frente à praça. Sua loja oferece pão caseiro feito no forno de barro e queijos feitos com leite ordenhado todas as manhãs pela própria senhora de 70 anos.

Depois de atirar nele, os militares expuseram o corpo do guerrilheiro cubano-argentino fora da escola, momento em que o povo conheceu pela primeira vez a imagem do perigoso revolucionário. Dona Hirma e uma amiga aproximaram-se, levadas pela curiosidade. "Ficamos impressionadas com o olhar dele, ele tinha os olhos abertos."

"Se alguma coisa o Exército fez bem-feita foi introduzir a cultura do medo na região", diz Leo, chefe do escritório de turismo de Valle Grande e bom conhecedor da história, enquanto vai de uma reunião para outra em plena organização dos eventos que serão realizados em outubro, quando se espera a presença de milhares de pessoas.

"As pessoas da aldeia ficaram assustadas com a psicose criada pelo Exército e o permanente estado de cerco em que viviam", acrescenta. Estratégia que continuou inclusive depois que o líder guerrilheiro morreu. "Vocês serão bombardeados por aviões soviéticos e cubanos por tê-lo matado", lembra Dona Hirma, contando o que os diziam os militares.

São 6 horas da tarde e a noite vem chegando depois de um pôr do sol nas montanhas que tinge com tons violetas, azuis e laranjas o horizonte além do Rio Grande. O céu brilha de forma intensa, por causa da ausência de energia elétrica, e todas as estrelas servem de fundo para a estátua de Che.

Casiano, um menino curioso de 12 anos, consegue as moedas para doces e refrigerantes guiando os turistas até a Quebrada del Churo. Quando perguntado o que sabe sobre Che, ele fala a respeito de uma história relatada pelo seu avô: "Quando a caravana de soldados e reféns atravessou a cidade, Che tinha um relógio no pulso e quis dá-lo de presente para um camponês que estava assistindo o espetáculo, mas os soldados não deixaram, embora Che tenha insistido".

Assim que viu a câmera, o garoto pediu para tirar uma foto dele e depois para ele tirar uma de mim. É a sua primeira foto com uma câmera sem ser a do seu telefone. No dia seguinte, convida para jogar futebol no pátio da escola, sob a luz da lua cheia. Já virei seu amigo, e ele será o único ma aldeia a me chamar pelo meu nome e não de "don" ou "gringo". É o menino rebelde do povoado.

Apesar da presença de tudo o relacionado à morte do Che, La Higuera não vive do turismo. A maioria dos visitantes vem por algumas horas, tira algumas fotos e vai embora. Plantações de milho, vacas leiteiras, batatas entre outros poucos cultivos garantem a dieta dos habitantes. Existe apenas uma escola primária, de modo que os adolescentes vão para Valle Grande ou Santa Cruz para estudar e não retornam.

"Não há pessoas para trabalhar a terra, aquela que nos dá comida todos os dias", lamenta dona Hirma. É que hoje moram cerca de 50 pessoas ali, sendo que antes moravam 70. Seus dois filhos que ainda vivem na aldeia ganham a vida oferecendo transporte de La Higuera para Valle Grande em seus táxis.

Consciente da forma como o turismo altera a identidade dos lugares, a senhora e a maioria dos vizinhos são a favor de uma maior exploração da atividade. Obviamente, isso atrairia mais clientes para sua loja e mais comensais para seus almoços e jantares caseiros. Ela sabe que, se a estrada estiver pavimentada e a luz elétrica for instalada, um número maior de visitantes vai se encorajar a ir e tirar fotos com a estátua de Che que está em frente a sua casa.

Na parte de trás da escola primária existe um espaço – um campo de futebol – que faz as vezes de habitação comunitária para aqueles que querem ir ao povoado e não têm dinheiro para acomodação. Na porta vem até meu encontro Brian, um menino de 6 anos que sempre está sorrindo. Ele me diz que não gosta de ir à escola, mas se escutam os gritos de sua mãe desde a porta de sua casa e ele não tem escolha. "Você sabe quem é o homem na estátua?", pergunto. "Sim, é um guerrilheiro que foi morto pela polícia", responde, antes de entrar na escola em que todas as paredes têm frases ou murais de Che. Ele me mostra que está carregando um ovo e uma batata para que lhe cozinhem o almoço na escola.

"Às 3 horas da tarde do dia 8 de outubro acaba o Combate del Churo e Che é capturado, às 7 chegam em La Higuera. No dia 9 de outubro, ao meio-dia, é alvejado. Depois é levado de helicóptero para Valle Grande, onde o expõem em no hospital da cidade e onde o fotógrafo francês Marc Hutten tira as famosas fotografias de Che morto com os olhos abertos.

Lá foi onde o médico Ustary Arze toca o corpo do guerrilheiro e observa que ainda é quente e que não tem a rigidez de uma pessoa morta há mais de um dia. Assim, torna-se na primeira pessoa a relatar que Che havia morrido naquele mesmo dia e não em 8 de outubro em combate, como havia sido reivindicado pelo exército: Che foi assassinado", conclui Christian, um historiador francês fanático do Che que vive há anos em La Higuera e que, juntamente com a sua companheira, é dono da hospedagem Los Amigos, a acomodação mais confortável da cidade.

Christian vai para sua grande biblioteca e pega dois livros. São El combate del Churo y el asesinato del Che, de Reginaldo Ustariz Arze, e El asesinato del Che em Bolivia: Revelaciones, de Adys Cupull e Froilan González. Nesses livros, é denunciado que a ditadura do general Barrientos escondeu e silenciou muitas vozes e testemunhas para implantar a ideia de que Che morreu em combate no dia 8 de outubro, por isso e por tanto tempo lembrou-se dessa data, e não 9 outubro, como a que Guevara havia morrido.

Depois daquela foto famosa, Che tem suas mãos cortadas no necrotério antes de ser enterrado em uma vala comum localizada nas proximidades do cemitério de Valle Grande, junto com outros 6 guerrilheiros, permanecendo lá em segredo por 30 anos. Até que em 1997 um dos militares negou a versão, até aquele momento mantida pelo exército boliviano, de que o líder cubano-argentino havia caído em combate e seu corpo havia sido queimado e as cinzas lançadas pelo Rio Grande. Hoje, onde sobre essa vala está o Mausoléu de Che, juntamente com um interessante museu com fotos, réplicas de seu diário e de sua vestimenta, bem como muitas informações históricas.

O senhor Ismael tinha 6 anos quando a guerrilha esteve por lá. Lembra-se de que os guerrilheiros passaram descendo de Abra del Picacho, uma pequena aldeia acima de La Higuera, onde estiveram e até dançaram algumas músicas aproveitando a festa da aldeia. "Eram vários homens que passavam tranquilos, saudando como qualquer outro visitante. Não me lembro das armas, apenas de suas grandes mochilas", ele diz, enquanto com minha inocente ajuda mata um porco. "Dona Gregoria encomendou."

Seguindo sua visão de negócios, ela está preparando para o próximo festival da aldeia chicharrón – gordura e couro de porco frito com batata e milho – e porco assado."Você tem medo da morte?", me surpreende. Respondo com um "não".

"Todos dizemos isso, mas quando aparece, aí realmente percebemos o que sentimos diante dela", continua. "E você gostaria de ser um soldado de Jesus?", pergunta Dom Ismael, faca na mão, raspando o couro do porco morto. Ele é evangélico, frequenta um templo da Igreja Universal em Valle Grande, e compara a guerrilha a soldados de Jesus: "Como o Che, Jesus lutou contra o império, naquele caso o romano. Pregando o bem contra o mal de Satanás. Che procurava uma vida melhor para nós camponeses, mas os ricos não o deixaram", conclui, já em tempo de cortar o porco.

As pessoas do povoado começam a se movimentar, todos preparando algum alimento para vender. É a festa da Virgem de Guadalupe, padroeira do lugar, a mesma que o sacerdote Hidalgo y Costilla levantou como bandeira na luta pela independência do México. A tradição é fazer uma promessa à virgem de dançar por três dias seguidos. É por isso que, nos dias 7, 8 e 9 de setembro há uma festa em La Higuera e em todas as aldeias vizinhas. Naqueles dias, os originários de La Higuera que migraram procurando melhor sorte em outras terras – geralmente para Valle Grande, Santa Cruz ou Argentina – retornam para se reconectar  com sua terra.

Uma roda de chicha, bebida de milho fermentado, e sucumbé, bebida quente feita com leite ordenhado pela manhã, cravo, canela e singani (bebida destilada à base se uvas), passa de mão em mão sob o som de bandas que tocam música vallegrandina – espécie de rancheiras mexicanas – com chapéu e violão texanos ao lado do altar da Virgem, cheio de velas coloridas e flores oferecidas por seus fiéis. As pessoas dançam e depois sentam-se para experimentar carne de porco ou frango picante.

Nessa data, as noites silenciosas, escuras e tranquilas que caracterizam a cidade são alteradas pela chegada de picapes 4x4, geradores elétricos, alto-falantes e até fogos de artifício. A mistura de pessoas resulta interessante. Pode-se distinguir facilmente entre aqueles que ainda moram em La Higuera, geralmente mais retirados, tímidos, com chinelos nos pés, roupas de campo com restos de alguma carne ou trabalho com o gado; e os higuerenses que hoje vivem longe de suas terras: roupas urbanas, jeans, sapatos, tênis Nike e cortes de cabelo como os de jogadores de futebol. Assim rapidamente pode-se distinguir as "celebridades" do povoado, que ostentam roupas europeias ou norte-americanas, com a pele e os cabelos cuidados, maquiagem, sapatos de couro finos e uma presença que tem um ar de superioridade.

Tudo isso a aproximadamente 200 metros da escola, hoje museu, onde as ultimas palavras do "homem mais completo do mundo", segundo Jean-Paul Sartre, ainda brotam nas paredes como um eco infinito: "Fique calmo, você está por matar um homem".

Outubro será festa. Faz 50 anos desde a morte do revolucionário que fez que La Higuera não fosse jamais a mesma. Espera-se que cheguem 10 mil pessoas a esta vila de 50 almas e que levem um pouquinho dessa terra no coração, tal como aconteceu com quem escreve estas linhas.

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