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Violência policial: Corumbiara entra em relatório da ONU

A violência arbitrária de forças policiais pode ser considerada tortura, mesmo quando ocorre fora das prisões


Violência policial: Corumbiara entra em relatório da ONU

Massacre de Corumbiara foi levado à Comissão Inter-Americana de Direitos Humanos (CIDH), que concluiu que o Brasil violou o direito à vida das vítimas. Foto: Eliseu Rafael de Sousa

Da ONU Brasil 

A violência arbitrária de forças policiais pode ser considerada tortura, mesmo quando ocorre fora das prisões. A conclusão é do relator da ONU sobre tortura, Nils Melzer. Em relatório apresentado na sexta (13) à Assembleia Geral da ONU, o especialista lembrou o massacre de Corumbiara, cidade de Rondônia que foi palco, em 1995, de uma investida policial contra sem-terra. Mais de 50 pessoas ficaram feridas e 12 morreram. Brasil respondeu pelo caso na Comissão Inter-Americana de Direitos Humanos (CIDH) por violar direito à vida.

“Qualquer uso desnecessário, excessivo ou arbitrário da força por oficiais de aplicação da lei é incompatível com a proibição absoluta do tratamento cruel, desumano ou degradante”, afirmou Melzer na sede das Nações Unidas, em Nova Iorque.

Segundo o relator, é possível concluir, sem sombra de dúvidas, que são criminosas todas as situações nas quais forças de segurança infligem intencionalmente dor ou sofrimento a indivíduos indefesos. Esses casos podem “equivaler até mesmo a tortura”, alertou o especialista independente.

Melzer explicou que, mesmo quando as vítimas não estão completamente impotentes, como em situações de autodefesa, custódia e controle de multidões, também é possível comparar a reação desmesurada da polícia à tortura, a depender do contexto, da evolução dos fatos e também das interpretações que organismos jurídicos fazem do limiar entre violência e tortura.


Manifestação de junho de 2013, no Distrito Federal. Foto: Mídia Ninja

Na avaliação do especialista, as indicações do relatório visam esclarecer a abrangência da proibição da tortura – a qual deve ser considerada para todo e qualquer uso intencional e arbitrário da força por oficiais da lei, “incluindo fora das paredes do cárcere”. A divulgação do documento tem por objetivo ajudar países a prevenir formas de tratamento degradante em quaisquer circunstâncias.

O relator acrescenta que Estados-membros da ONU devem garantir o treinamento e a instrução adequadas para que seus agentes de segurança evitem o uso arbitrário e desnecessário da força, dando prioridade a meios não violentos para cumprir seu dever.

“Se o uso da força é inevitável, oficiais do Estado têm de exercer restrição e agir em proporção à gravidade da infração e em acordo com o propósito legítimo a ser alcançado.”

Melzer também criticou a adoção de armas e dispositivos específicos para o controle de manifestações. “Uma arma ou qualquer outro meio de aplicação da lei tem de ser considerado inerentemente cruel, desumano ou degradante e, portanto, absolutamente proibido, sempre que for projetado com objetivo específico de – ou sempre que for da sua natureza – usar força desnecessária, excessiva ou arbitrária contra seres humanos”, ponderou.

Massacre de Corumbiara

O especialista independente lembrou o massacre de Corumbiara para abordar a complexidade de conceito de tortura. De acordo com Melzer, a prática implica, sempre, a inflição intencionada e proposital de dor ou sofrimento a uma pessoa indefesa.

Contudo, outras formas de tratamento ou punição cruéis, desumanas ou degradantes podem envolver a inflição de dor ou sofrimento, sem a intenção deliberada de fazê-lo ou sem que o ato de violência tenha um objetivo específico; ou mesmo quando o uso desnecessário, excessivo ou arbitrário da força ocorre em contextos nos quais as vítimas não estão indefesas – é o caso de situações de prisão, reações em defesa pessoal ou controle de multidões. Dependendo das circunstâncias, as violações infligidas podem assumir o caráter de tortura.

Para Melzer, o caso de Corumbiara é um exemplo dos desafios em estabelecer um limite claro entre os crimes violentos e o caso particular da tortura.

Em julho de 1995, cerca de 500 famílias de sem-terra invadiram o rancho Santa Elina, próximo ao município de Corumbiara em Rondônia. No dia 9 de agosto, a propriedade foi palco de uma operação policial para retirar a população da fazenda. Doze pessoas morreram, incluindo a menina Vanessa dos Santos Silva, de sete anos, que levou um tiro nas costas.

Relatos encaminhados à Comissão Inter-Americana de Direitos Humanos (CIDH) indicaram que policiais militares, usando máscaras e capuzes, agiram em conjunto com homens armados contratados pelos proprietários da fazenda. Durante a operação, foram usadas bombas de gás lacrimogêneo e armas de fogo. Alguns dos sem-terra também usaram armas de fogo para reagir à investida. O Estado brasileiro não negou esses fatos.

Citando as avaliações da CIDH, Melzer lembrou que, num primeiro momento, o organismo regional indicou o uso desproporcional, excessivo e desnecessário da força contra os sem-terra que haviam ocupado o rancho Santa Elina. Depois, dando prosseguimento ao relato dos fatos, a entidade aponta que, após ter a situação inteiramente sob controle, agentes do Estado submeteram os sem-terra a espancamentos, humilhações e formas degradantes e desumanas de tratamento.

A CIDH concluiu que, como as forças de segurança já haviam controlado a situação, os excessos cometidos poderiam ser equiparados à prática da tortura.

Em relatório publicado em 2004, a Comissão afirmou que o Brasil violou os direitos à vida, ao tratamento humano, à proteção judicial e ao justo julgamento dos trabalhadores sem-terra, tendo em vista a ocorrência de execuções extrajudiciais, de casos de tratamento desumano e de violações das obrigações assumidas pelo Estado em investigar os crimes cometidos.

A CIDH lembra que uma investigação para apurar a participação dos policiais foi aberta apenas uma semana após o massacre. Todavia, averiguações começaram apenas 21 dias após o ocorrido, ao final do mês de agosto.

Em suas recomendações ao Brasil, a Comissão determinou que o país deveria conduzir uma investigação completa, imparcial e eficaz, sob responsabilidade de organismos não militares. O governo também deveria garantir todas as reparações adequadas para as vítimas citadas no relatório e seus parentes mais próximos.

Outra conclusão da CIDH era de que o Brasil deveria revisar o Artigo 9º de seu Código Penal Militar, bem como o Artigo 82º do Código de Processo Penal Militar e outras disposições legais domésticas, a fim de acabar com a competência dos tribunais militares para investigar violações de direitos humanos cometidas por militares. Investigações deveriam, segundo a Comissão, ficar a cargo da polícia civil.

“No geral, espero que meu relatório esclareça que a violência policial arbitrária não é apenas uma política ruim, mas também equivale a tortura e tratamento cruel, desumano ou degradante”, enfatizou Melzer. “Qualquer tolerância, condescendência ou impunidade para com esses abusos pode equivaler a sérias violações do Direito Internacional.”

Instituição brasileira elogiada por monitorar tortura em 2013 e 2014

Em sua análise, Melzer sugere ainda que Estados ampliem as competências de mecanismos nacionais de prevenção da tortura, permitindo que essas instâncias desenvolvam atividades fora da esfera prisional, como é atualmente o caso de muitas instituições do tipo.

O Brasil foi citado como exemplo positivo. Em 2013, durante as manifestações de junho, e em 2014, no decorrer de protestos contra a Copa do Mundo, o Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro levou assistência jurídica para evitar ou reverter prisões arbitrárias – e prevenir outras violações de direitos humanos.


Saiba mais:
O Memorial da Democracia, museu virtual do Instituto Lula, tem um capítulo dedicado aos massares e chacinas  que aconteceram entre 1985 e 2002. 

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