Doe Agora!

Opinião: Uma visão histórica sobre o golpe

O autor mapeia na história brasileira, sobretudo nos momentos constituintes do varguismo, do brizolismo e do Partido dos Trabalhadores, linhas que possibilitem uma visão mais profunda do golpe contra Dilma Rousseff ‒ que encarna um golpe contra o país


Opinião: Uma visão histórica sobre o golpe

Por Horacio González, de Buenos Aires
Publicada originalmente em espanhol no jornal Página 12

Em seu discurso de defesa, Dilma Rousseff citou uma continuidade histórica que o Partido dos Trabalhadores ‒ fundado em uma cisão decisiva, em uma curva singular da história social brasileira, entre o final dos anos 1970 e o início dos 80, pelos sindicatos metalúrgicos de São Paulo, setores da esquerda e comunidades eclesiais de base, com a influência inclusive de Félix Guattari e, certamente, da academia paulista, a mais avançada do país ‒ não frequentava habitualmente. E tudo isso após Lula se desdizer de uma de suas frases imprecisas e precárias daqueles idos, porém extremamente restritiva: “lugar de intelectual é na universidade”. Desmentindo esse primeiro enfoque sindicalista despolitizado, o PT percorreu, em mais de trinta anos, um acidentado caminho que é necessário lembrar nos cartapácios de uma grande história, nem sempre evocada com sutileza.

No entanto, Dilma, em seu bem moldado e enérgico discurso no Senado, proferido antes de sua vil derrocada, alinhavou uma longa história brasileira. Nessa brava leitura, ela evocou o suicídio de Vargas, em 1954, as tentativas de golpe contra Juscelino Kubitschek e o golpe de 1964 contra João Goulart ‒ pontos altos de sua mensagem no Senado. Não se omitiu de sua militância na insurgência armada, relembrando aquela já famosa foto de seu interrogatório pelos militares, e comparou sua atitude de olhar nos olhos dos repressores com esse mesmo olhar que ora ela direcionava para os senadores conjurados, integrantes de um Parlamento entre os piores registrados pela história latino-americana, com deputados que berravam vivas ao Duque de Caxias (verdadeiro vencedor da Guerra contra o Paraguai) e, com nome e sobrenome, ao militar que torturou Dilma pessoalmente, em anos longínquos, no sul do país. Para ela, era a mesma coragem em situações diferentes.

Dilma falou longamente sobre Getúlio Vargas, mencionando-o como autor das Leis do Trabalho (inspiradas, como se sabe, na encíclica Rerum Novarum, na década de 1940). Não é possível deixar de pensar como aparecem hoje essas marcações históricas em um partido ‒ o PT ‒ cujas condições de nascimento obrigavam-no a abandonar o passado com desinteresse de principiante, mas um passado que era preciso investigar, sendo o próprio PT seu inesperado, consagrado e díscolo herdeiro. Mais cedo ou mais tarde, essa consciência emergiria. Hoje, no momento de máxima crise, acossado pelas mesmas direitas guarecidas nos veios subterrâneos que, ao virem à tona, deram os golpes no passado ou levaram Vargas ao suicídio, o PT procura antecedentes, filões de uma memória antiga que parece já esfumaçada; um hábito que, desde seu surgimento, nunca havia incorporado plenamente. Dilma ofereceu um encadeamento histórico bem fundado e sensível da história de mais de meio século de política e tragédia brasileira. Nenhum desses acontecimentos (1954, 1964) tem um fio condutor meramente repetitivo, mas o pano de fundo é a sequência golpista ziguezagueante que percorre o país. Vargas não tinha escapatória, pois seria citado pelo Tribunal que, a instâncias de seu grande rival, Carlos Lacerda, instalava-se na Base Aérea do Galeão, e a acusação não facilitava sua defesa, pois os acusados de atentar contra o próprio Lacerda eram personagens menores da segurança pessoal do mandatário, ao parecer ligados ao próprio chefe da segurança de Vargas. No atentado contra Lacerda – antigo chefe das forças da ordem conservadora no Brasil – morrera um oficial aeronáutico, seu guarda-costas.

Daí que as Forças Armadas possam ter convertido a trama jurídica do julgamento em uma intimação e cerco final a Vargas, que, apesar do gesto derradeiro, sempre foi lembrado pelas esquerdas brasileiras sob a incômoda face do “primeiro Vargas”, aquele que traça sua legislação trabalhista à imagem da Carta del Lavoro mussoliniana. Vargas, contudo, tem muitas outras arestas: pertence à escola honorífica dos grandes políticos latino-americanos, como Leandro Alem, Lisandro de la Torre ou o uruguaio Baltasar Brum. Getúlio se suicida com uma carta enigmática, e a arrogância de quem anseia por glória às custas de sua existência ‒ carta que comove o Brasil e toda a América Latina (o visitante curioso do Museu da República, no Catete, no Rio de Janeiro, pode ver, ainda hoje, o pijama ornamentado em sangue de Getúlio, a modo de esmalte distante e seco, na altura do coração, e de vaga lembrança de uma antiga tragédia). O discutido presidente, contra quem se sublevara o lendário tenente comunista Luís Carlos Prestes nos anos 1930, dedica-se primeiro a combater o Partido Comunista (no qual havia menos operários do que jovens militares, e que chega a “governar” por alguns dias a cidade de Natal, resiste no Recife e ainda comanda por algumas horas a Praia Vermelha, no Rio – acontecimentos narrados em um livro clássico brasileiro, Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos) e depois entabula alianças e aproximações com o partido pró-soviético, sob o espectro das forças mundiais em pugna. Prestes fora saudado em um poema por Neruda e, por volta dos anos 1940, era a figura máxima do comunismo brasileiro. Ele chega a questionar a posição do comunista argentino Vittorio Codovila em relação ao peronismo. Enquanto isso, o “udenismo” – da UDN, sigla estrepitosa do conservadorismo ancestral brasileiro ‒, encarnará o espírito do golpe crucial de 1964; já dissolvida, não é difícil encontrá-la repetindo-se nos rumos que tomou depois Fernando Henrique Cardoso, cujo nome é o signo-mor da desventura da conversão ao institucionalismo de direita (que não descarta o “golpismo patriótico”) de numerosos intelectuais latino-americanos. Vargas (o último Vargas) era mais parecido com Yrigoyen do que com Perón, e advertira que as Forças Armadas Brasileiras (às quais o general e ex-presidente argentino Agustín P. Justo entregara a sua espada, descontente com a neutralidade argentina na Segunda Guerra Mundial) destinavam um grande destacamento à Itália para perseguir o nazismo em retirada, com os “pracinhas” brasileiros atuando sob o amparo do V Exército Norte-americano, cujo chefe, o general Vernon Walters, regerá depois, em silêncio conspirativo, as sucessivas políticas das direitas brasileiras. Esse general da CIA morreu há tempos, mas a sua alma flutua ainda ‒ arremedando uma vulgata umbandista ‒ irrequieta, e hoje se encontra instalada no triste corpo vivente do sórdido Michel Temer.

Vargas, que em seu retorno vestira o traje póstumo do nacionalista industrialista, constrói altos-fornos e flerta com seu simultâneo, o peronismo – principalmente o jovem Goulart, seu ministro do Trabalho ‒, mas essas mesmas Forças Armadas que voltam dos últimos sangrentos combates, ao amparo dos militares norte-americanos, nos campos da Itália – em Monte Castelo, perto de Bolonha –, já possuíam um longo projeto golpista, que conseguiriam concretizar apenas em 1964. Aí está Lacerda, na primeira fila ‒ embora, mais tarde, esse famoso chefe do liberalismo de direita viesse a reclamar institucionalidade a Castelo Branco, presidente militar.

O ciclo político dos militares – Castelo Branco foi sucedido por Médici, Geisel e Figueiredo – estende-se por duas décadas, em meio a grandes transformações sociais e culturais. Há diferenças com a Argentina. Em primeiro lugar, a discussão sobre a repressão contou com um setor militar que a amorteceu. O general luterano Geisel manifestou-se várias vezes a respeito dessa delicada questão, e iniciou um lento processo político chamado de “abertura”, o qual, paradoxalmente, teve entre seus partidários um cineasta genial: Glauber Rocha, que buscava havia anos o talismã messiânico ou milenarista do ressurgimento popular brasileiro, inspirado nas formidáveis narrativas do romancista Guimarães Rosa. Em segundo lugar, uma política econômica que protegia o mercado interno. Contudo, o golpe de 1964 fora, ainda que com demora, o golpe que os militares pró-estadunidenses prepararam contra Vargas uma década antes, porém retomando agora alguns temas do “Brasil potência”, que o general Golbery do Couto e Silva promovia, como teórico do “planejamento estratégico”, e cuja onda se alastraria até anos recentes, com a ilusão das plataformas petrolíferas atlânticas, das usinas siderúrgicas, do biocombustível, do submarino nuclear e das macro-cidades, que continuariam a receber fluxos migratórios internos, mas diminuindo largamente os níveis de pobreza, coisa que o PT conseguiu sob uma social-democracia forte, mas nem por isso descontinuando a unânime utopia da “potência nacional”.

O PT surgiu no ABC paulista, onde estavam instaladas as fábricas alemãs de automóveis, em uma história que se iniciou de costas para o “populismo” anterior (Vargas, Brizola) e com o progressivo apoio – na medida em que Lula ia desmontando seus preconceitos iniciais – da esquerda universitária paulista. Em seus inícios, o PT rejeitou a perfilhação do ambicioso professor Fernando Henrique Cardoso (que passou do terceiro-mundismo para um liberalismo de direita clássica, quase uma mimese de Lacerda, depois de ter escrito, em seus anos moços, teses anti-imperialistas e sartreanas), mas também desdenhou da companhia do estrato anterior da história popular brasileira, representado por Brizola. Leonel Brizola se afastara previamente do varguismo canônico, e era agora um social-democrata de ideias avançadas, com uma política cultural (no governo do estado do Rio de Janeiro) traçada por seu amigo, o antropólogo Darcy Ribeiro. Darcy cultivava a grande escola do mito culturalista do “homem cordial” e das esquerdas sociais que almejavam desenvolver na prática uma democracia racial, questão sempre coberta de dificuldades, como revela a obra de Florestan Fernandes, outro dos cofundadores do PT. Esse PT dos anos iniciais teve idas e vindas com o fantasma do anterior populismo culturalista, razão pela qual as alianças entre Lula e Brizola passaram por várias alternativas e tiveram escassa fortuna eleitoral; mas Lula conseguiu se impor, no que já se mostrava como uma profunda maturidade de estadista, construída sobre sua ideia inicial de “articulação”, e com uma especial tolerância para com as diferentes variantes do PT (regionais e ideológicas), onde conviviam os velhos militantes insurgentes dos anos 1960 com todo tipo de movimentos sociais e religiosos do arquipélago multicolor brasileiro.

Dilma vinha, primeiro, de sua bem recordada atividade em um dos grupos armados do Rio Grande do Sul. Após a reintegração do Brasil à vida democrática, expressou afinidades com o partido de Brizola (exercendo inclusive cargos públicos) e, a partir daí, chegou ao lulismo petista, adquirindo forte presença como economista e planejadora. Havia sido submetida ao “pau de arara” ‒ abominável aparelho de tortura em que o detento é pendurado em um pau ‒ em suas épocas da militância na Política Operária (Polop). Lula, por sua vez, foi chamado de “migrante de pau de arara”, numa formidável alegoria oriunda, neste caso, do folclore popular brasileiro, pois assim eram chamados os trabalhadores nordestinos que viajavam de caminhão para a grande urbe industrial, segurando no pau que atravessava a caçamba do veículo. Assim chegavam tantos a São Paulo nos anos 1940 e 50: a imagem de dezenas de mãos agarradas à viga central da carroceria do caminhão criava a parábola dos populares vendedores ambulantes de aves (papagaios) cujas patas ficavam presas nos paus com correntes que as transportavam. Duas metáforas duras e contrapostas ‒ ironias da tortura e torturas da ironia.

O PT, lugar de encontros de uma heterogênea coleção de grupos e pessoas, ao achar por fim os veios obscuros de uma cultura brasileira permeada de complexidades, precisou deixar também ‒ como Evita ‒ “farrapos de vida no caminho”. Por isso, ao chegar no governo, baixou as expectativas iniciais quase que em todos os terrenos da tarefa, embora continuasse então, e deva continuar a ser a fronteira última contra as direitas que agora o cercam, mas que parecem vir cercando-o há décadas. Assim, vemos passeando entre os espantalhos do Senado o espectro de Lacerda ou as manipulações mais recentes de Fernando Henrique Cardoso e seu boneco de ventríloquo, José Serra, improvisado chanceler de Temer, com seu passado intelectual nas mesmas esquerdas pelas quais Dilma transitara e que, décadas despois, em outra mostra de um infausto destino, vem implorar o apoio, na Argentina, da chanceler Malcorra, frustrada gerente-geral da ONU.

No último trecho de sua trajetória, após uma dificultosa vitória eleitoral, Dilma nomeou para o Ministério da Fazenda um economista neoliberal que seria ministro do adversário derrotado nas urnas. Tremenda condescendência que consistia em uma troca de “governabilidade” por cima da fronteira quente e que não augurava nada de bom. Lula havia vivenciado já o primeiro e dramático percurso da vida do PT no Estado, quando dois de seus políticos mais importantes, militantes experientes e testados, oriundos, curiosamente, das esquerdas mais dramáticas dos anos 1960 – José Genoino e José Dirceu –, foram condenados a diversas penas por tráfico de influência. Ele manteve sempre a solidariedade com seus colaboradores, pois percebia claramente que eram antecipações do golpismo que operavam contra eles; mas, ao mesmo tempo, o PT foi vítima da irresolução dos partidos populares para criar mais imaginativas relações entre Estado, governo e sociedade, separando as finanças das empresas públicas do campo sempre minado do financiamento da política. Não há dúvidas de que se operou no orçamento público privilegiando objetivos emancipatórios e de justiça social, mas reanimando em parte um preconceito antiliberal sobre usos específicos desses fluxos de dinheiro, o que gerou o calcanhar de Aquiles dos partidos do novo progressismo latino-americano. Um dos impulsores do impeachment foi, justamente, Hélio Bicudo, jurista liberal que outrora participara da fundação do PT, e que se sentira tocado em sua “fibra moral” por tais manobras e compensações financeiras (mensalão, Petrobras).

Nas tensas cenas do Senado em Brasília, destacou-se a presença de Chico Buarque de Hollanda, permanentemente ao lado de Lula. Chico não é apenas o autor das mais sensíveis canções sobre a vida popular, amorosa e cultural do Brasil, herdeiro-mor de Dorival Caymmi, Ary Barroso, Noel Rosa e Tom Jobim (“Meu maestro soberano / foi Antônio Brasileiro”, diz na canção Para todos), mas também um exímio romancista, como fica demonstrado em seu último livro, O irmão alemão, história que por sua vez emerge da frondosa biblioteca de seu pai, o grande ensaísta Sérgio Buarque de Hollanda. O PT caiu e tornará a se erguer na história brasileira, ora melhor compreendida, feita de cinzas e prantos. Lula e Dilma continuam de pé, estarão ativos, como também estamos nós, pois aquela história é quase a nossa própria história, e a nossa história é também, e agora com mais razão, a deles. E eles somos nós.

Tradução: Damian Kraus e Celina Lagrutta 

RECOMENDADAS PARA VOCÊ