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Pablo Gentili: Na Colômbia ganhou o 'não se meta'

Secretário executivo do Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (Clacso) e professor da UERJ comenta o plebiscito colombiano que recusou o acordo de paz com as Farc


Pablo Gentili: Na Colômbia ganhou o 'não se meta'

Por Pablo Gentili
Artigo publicado originalmente no El País 

Compreender a guerra, suas causas de horror e de ódio, suas consequências de morte e de dor, é uma tarefa que simplesmente foge aos limites da razão. A guerra não se compreende, mas se sofre, se encarna, se despreza, se odeia. Sobretudo quando se trata da pior de todas as guerras, uma guerra entre irmãos, que custou mais de 7 milhões de vítimas durante 52 longuíssimos anos.

O que se poderia escrever ou interpretar sobre o trágico desenlace do plebiscito de 2 de outubro passado que não seja uma obviedade e, ao mesmo tempo, uma indecifrável adivinhação? Quem poderá explicar por que um punhado de colombianos disse não à paz? Por que escolheram seguir o caminho da morte em um país que viveu quase sempre rodeado de violência, de injustiça e ignominia, tratando de procurar nas pregas da memória as razões dessa incansável pulsão de morte e destruição que o constituiu como nação?

Tentar compreender uma guerra entre irmãos é insuportável, inimaginável, infinitamente doloroso e cruel. Nada do que dissermos será relevante. Mas tudo o que dissermos será necessário para buscar, ao menos, conjeturar como seguir a partir daqui. Não se trata apenas de saber aonde a Colômbia chegará, mas de onde partirá agora, depois desta nova derrota. Colômbia, esse país que obstinadamente pretende exercer seu direito soberano de viver em paz, como se renascer fosse seu destino, como se saber retornar do inferno fosse sua mais heroica virtude.

Muito se destacou, com razão, que o plebiscito sobre os acordos de paz era uma grande aposta democrática. O que parece incompreensível é que, se era mesmo, não tenham sido geradas as condições institucionais para que grande parte dos cidadãos e cidadãs colombianas comparecessem às urnas em 2 de outubro, evitando assim que a esperança fosse derrotada pelo medo, pela indiferença e pela apatia. É que no domingo não foi a rejeição aos acordos de paz quem ganhou. Ganhou o “não me meto”: quase 63% dos colombianos em condições de votar não o fizeram. Alguns alegaram que nos dias de chuva as pessoas votam menos. A paz dependia disso?

Pouco mais de 13 milhões de colombianos votaram a favor do sim ou a favor do não. Mas mais de 21 milhões não o fizeram, nem por um, nem por outro. Entender isto talvez seja uma das chaves para entender por que a paz se resiste a nascer nessa terra cruel e generosa, impiedosa e amável, desalmada e utópica. Uma paz que os poderosos não quiseram parir e que os que diziam lutar por justiça e igualdade nunca conseguiram engendrar. Tudo parecia prestes a mudar a partir de agora, mas mais de 21 milhões de colombianos e colombianas decidiram não votar e assim exercer seu direito de perpetuar um presente de incerteza e desconsolo. Simplesmente decidiram exercer seu direito de gritar um ensurdecedor silêncio, transformando a democracia no império dos abstinentes; dos que se pronunciam não estando; dos que expressam sua existência se invisibilizando; dos que se escondem atrás de um muro transparente no qual tudo se choca e se desintegra, especialmente a esperança.

A Registradoria Nacional do Estado Civil, organismo colombiano que conta oficialmente os votos do plebiscito, possui um “ranking de abstenção”, uma espécie de cemitério da democracia; ou seja, da paz. Em La Guadalupe, uma cidade de nome bonito e de futuro espectral, no Departamento de Guainia, onde a Colômbia se encontra ao mesmo tempo com o Brasil e com a Venezuela, ninguém votou: ninguém.

Em Uribia, conhecida como “a capital indígena colombiana”, em La Guajira, defronte ao Mar do Caribe, quase 97% dos votantes se abstiveram. Uribia recebeu esse nome em homenagem ao político liberal, Rafael Uribe Uribe, assassinado em 1914 e de quem o ex-presidente e mercador da guerra, Álvaro Uribe Vélez, é sobrinho tataraneto.

Em Aracataca, departamento de Magdalena, quase 95% dos que podiam votar a favor da paz, decidiram não fazê-lo. O dado não deveria ser mais ou menos significativo do que em outras das tantas cidades colombianas onde mais de 80% dos possíveis votantes decidiram silenciar sua participação. Não seria se não tivesse ali nascido Gabriel García Márquez, esse inventor de histórias e de realidades mágicas, que tanto nos ensinou a sonhar com uma Colômbia mais justa e humana. O que havia em Aracataca naquele 6 de março de 1927 em que Gabo nasceu? O que havia que hoje se perdeu? O que havia que a guerra envenenou?

Em Medellín, cidade que se transformou em ícone da reforma urbana democrática, menos da metade da população votou e 62,97% votou contra os acordos de paz.

Seja como for, embora o mundo estivesse expectante e ansioso, a grande maioria dos colombianos não votou em 2 de outubro. Por quê?

Talvez por medo, talvez por indiferença. Talvez por não entender, talvez por ter entendido. Talvez por desconfiança, talvez por excesso de certezas. Será preciso saber e será preciso saber logo, já que isto poderia condenar ao fracasso mais de cinco anos de complexas negociações e importantíssimos avanços no diálogo entre o governo colombiano e as FARC.

Por isso, surpreende que a primeira reação do presidente Juan Manuel Santos tenha sido declarar que convocaria “as forças políticas, em particular as do NÃO, para ouvi-las, abrir o diálogo e determinar o caminho a seguir”. Santos já deu mostras cabais de sua vontade de paz e de sua vocação para o diálogo. Entretanto, após uma derrota como essa, ele deveria se mostrar mais preocupado em dialogar e encontrar o caminho para a paz com os milhões de colombianos e colombianas que em 2 de outubro não compareceram às urnas, pelo motivo que for. Não será convencendo as forças políticas daqueles que militaram contra o acordo com as FARC que se conquistará a paz, mas sim com o apoio das 6.377.482 personas que votaram pelo sim e dos 21.833.898 que poderiam tê-lo feito mas decidiram ficar em suas casas. Essa é a imensa maioria que está ou deveria estar hoje a favor da paz. Quiçá teriam estado, se o governo tivesse se dedicado a convencê-los de que esse era o melhor caminho para construir o futuro de uma Colômbia mais democrática e mais livre.

Surpreende igualmente que, tendo realizado a arriscada aposta de uma consulta popular, o presidente Santos não tenha disposto os mecanismos que contribuíssem a desarticular a perigosa trama de desmobilização que afastou das urnas milhões de potenciais votantes. Nem seria concebível que a questão tenha passado despercebida para o governo colombiano e para as próprias FARC. Pode acaso o presidente Santos ter sido surpreendido como qualquer um de nós diante de um índice de abstenção de mais de 62%? E, se ele sabia, por que não blindou ou protegeu a consulta popular contra uma eventual derrota como a que sofreu? Afinal de contas, nada o obrigava a consultar a maioria dos colombianos sobre um assunto pelo qual não se interessariam, não se animariam ou não desejariam opinar. Mas Santos ofereceu, sim, ao mercador da guerra, o ex-presidente Álvaro Uribe, a oportunidade que este precisava para ganhar um protagonismo que ameaça dilapidar boa parte dos importantíssimos avanços alcançados.

52 anos de guerra não se passam em vão.

As feridas de una violência que ainda não terminou, continuam carcomendo a sociedade colombiana. O governo nacional deveria ter construído os anticorpos de uma abstenção que certamente tem origens complexas, mas entre cujas motivações constam a despolitização e a apatia. Se já se sabia que isto poderia ser assim, não ter feito nada é um sintoma de profunda inépcia, que poderá ter para Santos um imenso custo político. E, para a Colômbia, o custo de centenas de vidas desperdiçadas, de milhares de jovens abandonando novamente o país, de milhões de esperanças rotas.

A abstenção eleitoral nunca fortaleceu as instituições democráticas e foi sempre um bálsamo para as aspirações regressivas dos setores mais reacionários da sociedade. Isso ocorre na Colômbia, como está ocorrendo também na Espanha. A democracia que se esvazia de eleitores, que exercem livremente seu direito à preguiça, à saturação e à indiferença política, esvazia-se também de conteúdo, o que fragiliza e trivializa seus resultados. Uma democracia vazia, postergada, inócua, impotente.

No domingo ganhou o “não me meto” e afirmou-se uma democracia de abstinentes que poderá desestabilizar os imensos avanços alcançados pelo governo do presidente Santos e pelas FARC. O grande desafio da paz terá que ser vencido na rua, porta a porta, olho no olho, mobilizando a sociedade e suas organizações, as escolas, as universidades e os sindicatos; as organizações populares e os organismos de direitos humanos; os coletivos juvenis, os estudantes, os camponeses, os povos indígenas e os afro-colombianos; as mulheres feministas e as não feministas; os militantes de todos os partidos que apoiaram e contribuíram para construir a paz; os trabalhadores e as trabalhadoras de toda a Colômbia; os empresários honestos e comprometidos com a construção de um país mais justo e democrático; em suma, esses milhões de colombianos e colombianas que sempre sofreram as consequências da guerra, o horror da violência, da morte, das desaparições, do deslocamento forçado, da destruição e do abandono. Na Colômbia, a paz será com eles e graças a eles. Ou não será nada. 

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