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Ricardo Carneiro: A ortodoxia no divã

Um artigo de Olivier Blanchard e Larry Summers desmonta as políticas econômicas adotadas para combater a crise de 2008


Ricardo Carneiro: A ortodoxia no divã

Summers e Blanchard: mal estar na elite financeira. Imagem: Reprodução Youtube

Por Ricardo Carneiro
Publicado originalmente em Carta Capital 

A publicação do texto de dois renomados economistas do establishment norte-americano, “Rethinking Stabilization Policy: Back to the Future”, de Olivier Blanchard e Larry Summers, o primeiro economista-chefe do Fundo Monetário Internacional (FMI) até 2015 e o segundo ex-secretário do Tesouro na gestão de Bill Clinton e prócer do partido democrata, evidencia o estado de perturbação na ordem ortodoxa.

O trabalho, foi publicado pelo influente think tank Peterson Institute for International Economics e se fez acompanhar por seminário com o mesmo título, no qual grassaram controvérsias.

A partir da constatação da intensidade e duração da crise financeira de 2008, o texto se questiona não só sobre as concepções teóricas que obscureceram a percepção da formação e eclosão da mesma, mas também critica as políticas econômicas delas derivadas, na gestação e para lidar com esta crise.

A reflexão, parte da constatação da complexidade e centralidade das finanças no funcionamento do capitalismo contemporâneo, tema largamente ignorado pelo saber convencional. Este último, desde a derrota do pensamento e políticas keynesianas, nos anos 1980, adotou como principais fundamentos a hipótese da autorregulação dos mercados, o efeito temporário e limitado dos choques e o comportamento linear desses últimos. Esta concepção gerou um padrão de política econômica, omisso quanto a temas financeiros cruciais, bastante grave num ambiente de crescente liberalização.

Estas políticas tinham como princípio a rejeição do ativismo, baseando-se no postulado de que este último é incapaz de deslocar a economia de sua trajetória estrutural e obter crescimento mais rápido, de maneira permanente. O melhor resultado que a ampliação da demanda agregada conseguiria produzir seria uma aceleração temporária do crescimento, por conta da rigidez nominal de salários e preços. Passados os momentos iniciais e ajustadas as expectativas e os preços, a economia voltaria à sua trajetória natural. O ativismo, ao fim e ao cabo, produziria apenas mais volatilidade.

O objetivo da política econômica ortodoxa era muito claro: auxiliar a economia a voltar para sua trajetória natural diante de choques eventuais. Como esses últimos eram aleatórios e produziam desvios de formato linear, vis a vis as tendências, o melhor formato das políticas era o das regras. Ou seja, reação previsível e intensidade variável em função da magnitude do choque.

Neste contexto a política monetária era considerada muito superior à política fiscal, pois esta última, além de produzir efeitos alocativos e redistributivos indesejados, estava sujeita a injunções da representação política popular. A política monetária, com seus efeitos previsíveis, dependeria apenas do Banco Central, preferivelmente independente do poder político. Ou seja, um demiurgo gerido por sua casta de sacerdotes muitos deles oriundos das instituições financeiras privadas.

Este foi em linhas gerais, o perfil da política econômica dos países desenvolvidos durante o período conhecido como a Grande Moderação, no qual se combinaram um crescimento econômico razoável, com baixa inflação e pequeno ativismo da política econômica.

Contudo, é exatamente neste período que se gesta a maior crise do capitalismo, em parte pelas omissões desta política econômica, em parte por processos exteriores cujos efeitos positivos lhes foram erroneamente creditados. Num ambiente de crescente liberalização financeira e baixas taxas de juros, a alavancagem de todos os agentes econômicos cresceu desmesuradamente, rompeu todas as margens de segurança e construiu uma situação, nos termos minskyanos, de profunda fragilidade financeira.

Na discussão dos fatores responsáveis pela gestação da crise financeira, o texto omite questões importantes. Desde logo, dá pouca ênfase à financeirização na sua dimensão de desregulação das transações de um amplo espectro de ativos reais e, sobretudo, financeiros, passíveis de se converter em objeto de acumulação por famílias e empresas.

Ademais, parece concordar que as baixas taxas de juros vigentes durante o período, e que certamente foi um dos ingredientes da formação da grande bolha, resultou do regime de política econômica vigente.

Vale dizer, a credibilidade dos bancos centrais no seu objetivo sagrado de combater a inflação teria logrado não só este objetivo como o havia realizado com juros baixos e declinantes. Certamente, o efeito deflacionário exercido pela incorporação de centenas de milhões de trabalhadores asiáticos na produção manufatureira foi fator mais decisivo na explicação da baixa inflação. Mas, embora as razões tenham sido distintas, a permanência de inflação e taxas de juros baixas foram juntos com a liberalização e ausência de regulação financeira os ingredientes da crise.

O texto acerta ao apontar as duas principais implicações da crise, enfatizando mais uma vez, a centralidade dos aspectos financeiros da mesma.  O estouro da bolha implicou, de um lado, uma perda de capital significativa das instituições financeiras, levando a uma contração substancial do crédito após a crise. Por sua vez, explicitou o desequilíbrio de balanço de famílias e empresas, o seu excessivo endividamento ante o declínio do valor de seus ativos e também o descasamento de fluxos de caixa, com a incapacidade de servir a dívida levando a posições Ponzi.

Embora os autores estejam de acordo com o tratamento emergencial dada à crise na sua etapa mais aguda de contração da liquidez, discordam da adequação e suficiência das políticas postas em prática, posteriormente.

No cerne da desavença está a exclusividade atribuída à política monetária, sem o apelo concomitante às políticas de regulação e prudenciais e mesmo à política fiscal. O ponto de partida da crítica dos limites da política monetária é o ambiente de baixas taxas de juros, tanto curtas quanto longas.

Curiosamente, talvez pela incapacidade de se libertar de velhos conceitos, os autores têm uma visão ambígua quanto aos determinantes dessas últimas. De um lado, ressaltam mudanças estruturais, como a queda da taxa retorno do capital, a taxa natural de juros, e do espectro de taxas correspondentes das várias classes de ativos. De outro, e com mais propriedade, indicam o peso da política monetária não convencional, o quantitative easing (QE), como fator preponderante deste quadro.

Destacar a importância do QE na conformação das taxas de juros é um aspecto crucial. A crise produziu um brusco deslocamento da preferência pela liquidez em direção à moeda e aos títulos de menor maturidade. Na ausência de uma intervenção decisiva dos bancos centrais, isto teria conduzido a uma elevação expressiva da taxa de longo prazo e a uma severa inclinação da curva de juros.

O QE equacionou a questão de duas formas: ao adquirir de títulos públicos de várias maturidades das carteiras dos intermediários financeiros, evitou tanto a aumento da taxa longa quanto diminuiu o prêmio de maturidade (term premia), reduzindo o diferencial dentro do espectro de taxas, a denominada inclinação da curva de juros. É importante notar que esta foi uma operação radical e que mudou o perfil de intervenção do Banco Central na economia, conduzindo não só a balanços muito dilatados destas instituições, mas a uma estatização parcial da dívida pública.

Duas questões principais emergem desta atuação dos bancos centrais: a perda de eficácia da política monetária para enfrentar novas situações de recessão, devido ao patamar muito baixo das taxas de juros (zero lower bound), e o tamanho dos seus balanços, com a histerese que implica. 

No primeiro aspecto, concluir que a política monetária perdeu potência é inevitável, pois o limite zero das taxas de juros é intransponível. Quanto aos balanços, a sua redução ou manutenção é uma questão bem mais complexa. O fato é que adquirir títulos de médio e longo prazo em troca de emissão monetária que volta aos BCs sob a forma de reservas remuneradas constitui uma alteração radical no perfil de funcionamento dos mercados financeiros, que adquirem uma liquidez pronunciada.

Novas intervenções nesta direção só agravarão o problema. Assinale-se que o FED detém 35% do estoque de treasuries nos EUA e o Banco do Japão, cerca de 59% dos títulos públicos japoneses. Com tamanha liquidez no sistema, seus deslocamentos bruscos parecem inevitáveis, acentuando sua instabilidade. Os autores do texto estão conscientes disso e sugerem uma reversão das operações. Seria isto possível sem criar mais instabilidade?

Diante das limitações da política monetária, uma ênfase maior deveria recair sobre as políticas prudencial e a fiscal. A primeira para prevenir a gestação de novas crises, a segunda, para estimular a economia diante de eventuais desacelerações.

Num quadro de baixíssimas taxas de juros, inferiores ao crescimento do produto, a despeito do elevado peso das dívidas públicas, a política fiscal deveria ser acionada, sem o temor de perda de controle da sua trajetória. Ou seja, o seu peso em relação ao PIB poderia inclusive se reduzir, a despeito de novas emissões para financiar o gasto. Nesse caso, o lamento dos autores diz mais respeito à perda de qualidade desta última, pelo desuso, vale dizer, de estabilizadores automáticos mal desenhados e a ausência de um portfolio de projetos de investimento.

Para evitar a formação de novas bolhas, os autores negam o eventual papel que a política monetária possa desempenhar. Ou seja, utilizar a política de juros para desinflar bolhas correntes ou potenciais, pode gerar mais problemas do que resolver, sobretudo por uma questão de timing e de conflito com o ciclo produtivo. Assim depositam todas as esperanças na política prudencial e, particularmente, na definição dos requisitos de capital das instituições financeiras, ou seja, na regulação da sua alavancagem. Não deixa de ser um excesso de otimismo no contexto de um capitalismo tão desregulado e com mercados tão líquidos.

A conclusão geral dos autores está longe de ser otimista. Em alguns momentos, o texto adverte em tom profético: se nada for feito uma nova crise virá. A despeito de estarem convencidos da impropriedade das atuais políticas e apelarem para sua reformulação, não consideram que isto não está garantido. Aliás, as próprias divergências no seminário promovido para discutir o texto dão mostras disto, incluindo nesse caso reiteradas e diversas manifestações de apreço à ortodoxia.

* Professor titular do Instituto de Economia da Unicamp


A coleção Desafios Econômicos do Instituto Lula reúne artigos inéditos ou não de especialistas que discutem as questões econômicas do Brasil e do mundo.

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