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“Somente quando Lula assumiu a presidência do Brasil é que a população negra teve suas demandas históricas respeitadas”


“Somente quando Lula assumiu a presidência do Brasil é que a população negra teve suas demandas históricas respeitadas”

Nilma Lino Gomes. Foto: Laycer Tomáz/Câmara dos Deputados

“Somente quando Lula assumiu a presidência do Brasil é que a população negra teve suas demandas históricas respeitadas”

Há 14 anos, em março de 2003, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva instalava a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), uma das mais importantes políticas de ações afirmativas voltadas para a população negra realizada no Brasil nos últimos 14 anos.

Para marcar a data, conversamos com Nilma Lino Gomes, ex-ministra da Secretaria de Políticas da Igualdade Racial no governo de Dilma Rousseff, que falou sobre a importância da SEPPIR para a garantia de direitos da população negra, listou os principais avanços nos últimos 14 anos e comentou sobre como os retrocesso nas políticas sociais atingirá de forma contundente negras e negros.

Confira a entrevista:

-Qual a importância de uma pasta como a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial e como ela beneficia a população negra?

Há anos o Movimento Negro brasileiro, o Movimento de Mulheres Negras e o Movimento Quilombola atuam como protagonistas políticos da denúncia ao racismo, no Brasil. No entanto, durante muito tempo essa denúncia não foi levada a sério pelo poder público e suas lideranças. Somente quando o Luiz Inácio Lula da Silva assumiu a presidência do Brasil é que a população negra teve várias de suas demandas históricas respeitadas. Uma delas foi a criação de um ministério com o objetivo de realizar políticas de promoção da igualdade racial, a SEPPIR.

A importância da SEPPIR é simbólica, política, social, econômica, jurídica e cultural. Por meio dela, a pauta da igualdade racial, com todos os desafios e limites vividos, se tornou política de Estado. A criação da SEPPIR desencadeou a implementação de uma série de estruturas administrativas semelhantes nos estados, municípios e DF. Isso fortaleceu o Movimento Negro, de Mulheres Negras e Quilombola e contribuiu no processo de desvelamento do mito da democracia racial.

Além disso, a SEPPIR significou o cumprimento do compromisso internacional do Brasil durante a IIIa Conferência de Durban, em 2001, realizada pela ONU. Neste evento internacional, após apresentar dados internos sobre a desigualdade racial, o Estado brasileiro se comprometeu com o combate ao racismo e com a construção de políticas de ações afirmativas.

A criação da SEPPIR é, portanto, uma das mais importantes políticas de ações afirmativas voltada para a população negra realizada por um governo progressista e por um Estado democrático nesses últimos 14 anos. Um governo e um Estado que compreenderam o seu papel na superação do racismo e na construção da igualdade racial, um dos eixos importantes para a garantia da democracia e da justiça social.

Por meio da SEPPIR, uma série de ações, projetos e políticas voltadas para a igualdade racial, de forma específica ou transversal, passou a existir em nosso país. Sem dúvida, isso não só beneficiou a população negra como, também, fez avançar o processo de efetivação do direito à diversidade e o reconhecimento público e político da importância das negras e dos negros na construção do nosso país.

-Quais foram os principais avanços em relação à igualdade racial no país durante os últimos 14 anos?

Um dos principais avanços foi o reconhecimento público das negras e dos negros como sujeitos de direitos. Como sujeitos políticos e de políticas. O racismo tem como objetivo subalternizar, inferiorizar as negras e os negros. É um fenômeno perverso que tentar roubar a nossa humanidade. Por isso, quando a igualdade racial almejada pelo Movimento Negro, de Mulheres Negras e Quilombola se tornou uma das preocupações políticas do governo federal, em reconhecimento à luta por direitos e ao protagonismo da população negra, o Brasil avançou.

Mas há também avanços institucionais. Posso citar alguns que foram protagonizados pelo Executivo nos últimos 14 anos ou por ele foram induzidos e apoiados na esfera do Legislativo e Judiciário. São eles: A própria criação da Seppir em 2003; a introdução do artigo 26 A na LDB pelas Leis 10.639/03 e 11.645/08 tornando obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira, africana e indígena nas escolas da educação básica, a criação da SECADI, no Ministério da Educação; o Estatuto da Igualdade Racial – Lei 12.288/10; a criação da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB) (Lei 12.289/10); a Lei de cotas nas IFES – (Lei 12.711/12); a constitucionalidade das cotas raciais pelo STF,em 2012; a Lei de cotas raciais nos concursos públicos – Lei 12.990/14; a Política Nacional Para a saúde da população negra; a criação do Conselho Nacional de Política de Promoção da Igualdade Racial (CNPIR), a construção do Sistema Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SINAPIR); o Programa Brasil Quilombola; a Criação da Reunião de Autoridades sobre os Direitos dos Afrodescendentes, no âmbito do Mercosul, em 2015, a cooperção com os países africanos de língua portuguesa na área da educação, gênero e justiça; a criação da Ouvidoria Nacional de Igualdade Racial, a criação do Disque 100 Racismo, introduzindo dois novos módulos no disque 100 que recebem denúncias sobre crimes contra a juventude negra, mulheres negras, povos e comunidades tradicionais e quilombolas; a construção da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais – PNPCT.

-Para você, a política de cotas está mudando o cenário das universidades no país? Qual a importância das cotas?

A política de cotas provou ser um instrumento eficaz para a redução das desigualdades raciais existentes no ensino superior e na sociedade. Essa medida permitiu às jovens e aos jovens negros o direito ao ingresso no ensino superior. Jovens que, diante do quadro secular de desigualdade social, racial e de gênero ainda não tinham essa oportunidade e não gozavam desse direito.

Só em 2015, já tínhamos uma oferta de aproximadamente 150 mil vagas para negros e negras nas universidades. Além das vagas garantidas pelas cotas, os estudantes negros também tiveram acesso a outros instrumentos oferecidos pelo Governo Federal, tais como, o Fies e o Prouni, que auxiliam no ingresso e na permanência em instituições privadas de ensino superior.

As cotas representam uma das modalidades mais radicais das Políticas de Ações Afirmativas e foram aprovadas como constitucionais, por unanimidade pelo STF, em 2012. E os seus efeitos positivos se fazem sentir nas pesquisas sobre desempenho dos estudantes cotistas. Um desempenho igual ou melhor do que os não cotistas. Portanto, as cotas são um direito e uma realidade. E temos que lutar pela sua continuidade. Além disso, como já foi dito, a implementação das ações afirmativas e das cotas cumpre o compromisso internacional de superação do racismo e da desigualdade racial assumido pelo Brasil durante a conferência de Durban, em 2001.

As cotas trazem maior diversidade para as universidades e instituições onde são implementadas. Atualmente, todas as instituições federais de ensino adotam a política de cotas. Mas há desafios à frente como, por exemplo, a justa permanência dos estudantes cotistas na universidade, a mudança do currículo da graduação e pós que reconheça os saberes desses novos coletivos sociais que acessam o direito ao ensino superior e a implementação das cotas na pós-graduação.

-Sobre os retrocessos que o país está vivendo, você acredita que a população negra é a que mais sofre com a política de cortes de direitos? Por quê?

Não existe lugar para a diversidade em um governo golpista. Estamos diante de retrocessos e cortes de direitos provocados por um golpe parlamentar, jurídico, midiático, fundamentalista, de classe, gênero, raça e com uma orientação heteronormativa. Apesar dos avanços, negras e negros ainda se encontram em patamares de profunda desigualdade socioeconômica no Brasil. Ainda há muito por fazer. Sobre a população negra recai historicamente a articulação perversa da desigualdade de classe, raça, gênero e região. Portanto, qualquer perda de direitos conquistados, qualquer retrocesso nas políticas sociais atingirá de forma contundente as cidadãs e cidadãos negras e negros.

A extinção da SEPPIR, a perda de status e de orçamento da pauta da igualdade racial e de gênero no atual governo é um retrocesso tremendo. Tudo aquilo que alcançamos ao longo desses 14 anos está sendo invisibilizado e silenciado em poucos meses de governo ilegítimo. Além disso, as propostas de Reforma da Previdência, Trabalhista, a Emenda Constitucional 96/2016 (antiga PEC 241/55), os retrocessos na pauta da saúde com a tentativa de desmantelamento do SUS, o retrocesso da pauta da igualdade de gênero, o projeto de Terceirização, o projeto da Escola Sem Partido e a abertura de espaço político e econômico para os ruralistas trarão retrocessos inimagináveis para o país e atingirão profundamente a população negra e pobre.

Estamos também em tempo de exacerbação da cultura do ódio alimentada, entre outras coisas, pela pauta retrógrada e antidemocrática do atual governo federal. E o ódio alimenta o racismo. Por isso, vivemos tempos sombrios. Tenho enfatizado que estamos diante de um ataque não só as políticas e aos direitos sociais arduamente conquistados ao longo dos séculos. O ataque é contra os sujeitos dessas políticas. E as negras e negros são sujeitos centrais não só da luta por direitos no Brasil mas, também, das políticas de direitos que temos construído em todo a nossa trajetória pela consolidação da democracia, da igualdade racial, da equidade e da justiça social. Ainda há muito por fazer. Mas é inegável os avanços que foram construídos no Brasil, nos últimos 14 anos.


*Nilma Lino Gomes é professora da graduação e pós-graduação da Faculdade de Educação da UFMG. Foi ministra da Secretaria de Políticas da Igualdade Racial e do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos no governo de Dilma Rousseff.

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