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Gate vê Brasil ʽtão perto dos EUA, tão longe da Chinaʼ


Gate vê Brasil ʽtão perto dos EUA, tão longe da Chinaʼ

Tão perto dos Estados Unidos, tão longe da China: a política externa brasileira no governo Bolsonaro.  Está no ar a décima terceira edição do Boletim Gate, produzido pelo Grupo de Acompanhamento de Temas Estratégicos do Instituto Lula. 

Acesse o Boletim em PDF no ISSUU do Instituto Lula, nossa plataforma de publicação de textos. Você também pode fazer o download do documento clicando aqui . Ao final desta página, você encontra o link para os outros boletins produzidos pelo Gate.

Leia na íntegra:

Por Adhemar Mineiro, Luciana Ballestrin, Luís Vitagliano e María José Haro Sly

A GRANDE NOVIDADE: ALINHAMENTO AUTOMÁTICO AOS INTERESSES DOS ESTADOS UNIDOS

Os marcos da política externa do governo Bolsonaro foram definidos formalmente durante o processo eleitoral de 2018, embora muitos apontem que já estavam presentes na ruptura institucional promovida em 2016 que resultou no afastamento da presidente Dilma. O elemento central dessa definição foi o alinhamento automático às posições da política externa dos Estados Unidos (EUA) sob o governo Trump no âmbito dos fóruns multilaterais – como o Sistema Nações Unidas – e das instituições financeiras multilaterais. Esse movimento começou a ser percebido já no início do governo Temer de forma mais branda, mas foi revertido no processo com a gestão de Aloysio Nunes no Itamaraty, quando novamente voltou a ser buscado um equilíbrio entre os interesses dos EUA e da China no âmbito das grandes definições. Assim, se no início da gestão Temer com o Ministro José Serra se convalidaram os interesses das empresas petrolíferas dos EUA, com o Ministro Aloysio Nunes foi novamente enfatizado o comércio com a China e a participação brasileira nos BRICS. Esse posicionamento culminou, por exemplo, em dezembro de 2017, e consulados), de políticas de cooperação (viabilizadas por uma atuação mais ativa da ABC, Agência Brasileira de Cooperação) e de relações comerciais com os países do Sul Global. Essas políticas tinham viabilizado não apenas um maior protagonismo do país em vários âmbitos (OMC, G20, ONU, etc.), mas também a ascensão de brasileiros em cargos de representação importantes no cenário internacional, como a Direção Geral da OMC (com o diplomata Roberto Azevêdo) e da FAO (Organização para a Alimentação e Agricultura das Nações Unidas, com o economista José Graziano da Silva). Além disso, o protagonismo da política externa brasileira dos cerca de 15 anos que precederam ao governo Bolsonaro havia levado à constituição da Unasul (União das Nações Sul-Americanas) e da CELAC (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos) – uma espécie de embrião de uma OEA (Organização dos Estados Americanos), sem os Estados Unidos e o Canadá, mas com Cuba. Essas iniciativas foram abandonadas com o isolamento dos EUA na reunião ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC) em Buenos Aires – vale lembrar que o mecanismo de deliberação da OMC exige o consenso entre os participantes; assim, a posição isolada do então governo Trump foi suficiente para que a reunião não terminasse com qualquer resultado significativo ou mesmo um comunicado final.

Sob o governo Bolsonaro e com o ministro Ernesto Araújo, o país assumiu definitivamente uma postura subalterna de alinhamento aos EUA, cujo maior exemplo talvez tenha sido no processo de sucessão no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Uma postulação brasileira ao eventual cargo relevante foi abandonada pelo alinhamento automático ao candidato dos EUA, em um ambiente onde vários países da América Latina (como Argentina, México e Costa Rica, entre outros) e – mesmo países europeus – chegaram a ensaiar o veto à candidatura de um nome dos EUA. Este fato subverteu o acordo original de criação do banco que estabelecia que sua sede fosse em Washington DC, capital dos EUA, mas seus presidentes seriam sempre de um país latino-americano – o que havia sido respeitado até então.

No Sistema Nações Unidas (ONU), esse alinhamento com os EUA em temas como gênero e diversidade sexual, por exemplo, significou o alinhamento com fundamentalismos religiosos, expressos por diferentes países – o católico dos governos da Hungria e Polônia; o cristão evangélico do governo de Uganda; o islâmico dos governos da Arábia Saudita e Irã. No caso dos temas ambientais, o alinhamento automático às posições dos EUA foi minimizado em função da pressão de outros parceiros importantes do Brasil inseridos na União Europeia. A abertura de espaços no plano internacional para movimentos internos de aliados do governo Bolsonaro (garimpeiros, grileiros, agronegócio e outros, para os quais a proteção ao meio ambiente aparece como “entrave” ao desenvolvimento – leia-se, à possibilidade da destruição ambiental), vulnerabilizou áreas reservadas de indígenas e quilombolas, levando à perda do protagonismo e ao isolamento do país nos fóruns ambientais.

DISTANCIAMENTO DO SUL GLOBAL

Vale lembrar ainda o afastamento do Brasil de parceiros, especialmente latino-americanos e africanos, com os quais vinha tentando trabalhar posições conjuntas e alinhamentos desde 2003. A diplomacia presidencial durante os governos Lula (2003-2010) fortaleceu a representação internacional da política externa brasileira, enfatizando a importância estratégica das cooperações sul-sul. Nesse sentido, houve a ampliação de estruturas diplomáticas (expansão do número e da atuação de embaixadas e consulados), de políticas de cooperação (viabilizadas por uma atuação mais ativa da ABC, Agência Brasileira de Cooperação) e de relações comerciais com os países do Sul Global. Essas políticas tinham viabilizado não apenas um maior protagonismo do país em vários âmbitos (OMC, G20, ONU, etc.), mas também a ascensão de brasileiros em cargos de representação importantes no cenário internacional, como a Direção Geral da OMC (com o diplomata Roberto Azevêdo) e da FAO (Organização para a Alimentação e Agricultura das Nações Unidas, com o economista José Graziano da Silva). Além disso, o protagonismo da política externa brasileira dos cerca de 15 anos que precederam ao governo Bolsonaro havia levado à constituição da Unasul (União das Nações Sul-Americanas) e da CELAC (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos) – uma espécie de embrião de uma OEA (Organização dos Estados Americanos), sem os Estados Unidos e o Canadá, mas com Cuba. Essas iniciativas foram abandonadas e rejeitadas pelo governo Bolsonaro, sob justificativas exclusivamente ideológicas. Além disso, o MERCOSUL está passando pelo seu pior momento desde a sua criação. O governo Bolsonaro só observa o acordo de livre comércio do Uruguai com a China, o qual coloca em risco toda a infraestrutura do maior organismo de proteção regional das indústrias brasileiras. A desindustrialização e o aumento da primarização acabaram com uma descoordenação regional nas cadeias primárias e no fomento de negociações bilaterais. A América do Sul converteu-se na maior produtora de soja e carnes do mundo, faltando-lhe uma espécie de OPEP (Organização dos Países Exportadores de Petróleo) neste segmento que permitisse negociar melhores preços e coordenar a produção e o abastecimento.

No âmbito mais geral, outro elemento significativo do desalinhamento diplomático provocado pelo governo Bolsonaro foi a votação do bloqueio à Cuba. Naquela votação simbólica na ONU, os EUA se isolaram e contaram com o respaldo de poucos e fiéis parceiros, incluindo o Brasil. Essa postura rompeu com a tradição histórica de condenação ao bloqueio comercial à ilha, revelando o tom subserviente, beligerante e não pragmático que têm marcado a política externa bolsonarista. 

RUPTURA DIPLOMÁTICA, EROSÃO DEMOCRÁTICA E SUBALTERNIZAÇÃO INTERNACIONAL DO BRASIL

Ao optar por esse caminho, a política externa do governo Bolsonaro tem realizado uma ruptura com a tradição diplomática do país. Trata-se um esforço coordenado para fragilizar a autonomia nacional, descontruir alinhamentos históricos, prejudicar negociações, desarticular o Itamaraty, desinvestir em áreas estratégicas, acelerar a desindustrialização do país, entre outros graves comportamentos no ambiente externo. Assim, o governo Bolsonaro tem desmontando o que alguns chamaram de diplomacia “ativa e altiva” na primeira década deste novo século. Ainda, o Brasil se tornou como que um pária da sociedade internacional pela sua postura negacionista em relação aos problemas ambientais globais, à importância dos direitos humanos e à gravidade da pandemia do coronavírus – a qual já fez mais de meio milhão de vítimas no Brasil.

Esta área de políticas de governo e de Estado talvez seja onde mais se evidencia o processo de erosão democrática em curso no país, intensificado pelo governo Bolsonaro de forma inédita na nossa história. O ponto principal aqui é que a tradição diplomática brasileira em termos estratégicos, desde fins do século XIX, sempre foi a de tentar se equilibrar entre as posições dos países hegemônicos, aproveitando-se dos “espaços” diplomáticos que esse equilíbrio lhe dava para conseguir algum intervalo dentro do qual pudesse movimentar algumas políticas com razoável autonomia. Isso se deu no passado, aproveitando as disputas por hegemonia entre Inglaterra e EUA desde o final do século XIX na região (América Latina e Caribe), passando pelas disputas entre Alemanha e Inglaterra e aliados que antecederam à Segunda Guerra Mundial, até à busca de espaços entre os interesses estadunidenses e japoneses e alemães, nos quais se moveu a diplomacia do governo Geisel na década de 1970. Assim, no contexto atual de disputa hegemônica entre EUA e China, abrem-se novamente espaços políticos dentro dos quais a diplomacia brasileira poderia se movimentar. Aliás, os movimentos da diplomacia brasileira no começo dos anos 2000 até 2014 foram favorecidos exatamente por esses espaços que foram sendo abertos. Os EUA são um parceiro tradicional do Brasil, com o qual negocia uma série de pactos, acordos e organizações regionais. Por outro lado, a participação no G20, a institucionalização crescente dos BRICS, e especialmente, o comércio e a estruturação de novos investimentos à escala mundial, aproximaram o Brasil da China. Assim, estava dado um caminho confortável para o exercício da velha posição brasileira de buscar atuar nesses espaços para ganhar grau de liberdade em sua política externa. Se de um lado, a hegemonia dos EUA é regional e globalmente asfixiante, de outro a parceria que a China oferece reforça a posição do Brasil como um produtor e exportador de commodities agrícolas, minerais e energéticas, mesmo que haja a produção de um superávit comercial importante. Isso acaba fechando espaços para estratégias industrializantes e de desenvolvimento alternativas, gerando fortes impactos negativos do ponto de vista social e ambiental. Ou seja, o “espaço político” poderia ser bem aproveitado para escapar da asfixiante hegemonia estadunidense na região, permitindo negociar com a China em outros termos de sua parceria econômica, de modo a ganhar grau de liberdade para políticas tecnológicas e industriais que gerem valor adicionado, diversifiquem as exportações, possam gerar empregos no país e fortaleçam sua autonomia.

O quadro internacional de disputa hegemônica entre EUA e China, desde então, apenas se acirrou. O governo Trump explicitou a disputa, colocando-a como foco importante da atuação global dos EUA e focando especialmente as áreas econômica e militar. Os EUA, além disso, focaram sua atuação no bilateralismo, esvaziando uma série de organizações internacionais (Sistema ONU, OMC, G20, conferências climáticas, entre outras), nas quais os interesses chineses poderiam se mover aproveitando também os conflitos entre EUA e alguns de seus mais importantes parceiros, como a União Europeia. Embora com o governo Biden os EUA tenha alterado parte de políticas anteriores, especialmente o esvaziamento dos fóruns multilaterais, a disputa hegemônica com a China permanece, já tendo sido explicitado várias vezes pelo novo governo dos EUA.

Por outro lado, o crescimento econômico chinês tem levado também a seu crescimento diplomático, ao mesmo tempo em que a China não tem cedido em suas principais reivindicações regionais, tais como o controle sobre Hong Kong, a reintegração de Taiwan – entendida pela China como província rebelde – e a maior autonomia nas rotas de navegação do Mar do Sul da China, com redução dos controles navais dos EUA na região. Além disso, o gigante asiático avança com seu megaprojeto “Um Cinturão, uma Rota” que visa criar uma série de rotas: por terra, via Rússia, Ásia Central e Oriente Médio até Europa; por mar, pelo Sul da Ásia e Mar Vermelho/Canal de Suez; ou contornando o Sul da África, por mar via Pacífico e Américas Central e do Sul; criando uma rota direta via o Paquistão e promovendo corredores bioceânicos na América Latina. Trata-se de uma estratégia ousada que investe em infraestrutura logística de alta velocidade, promoção do comércio e coordenação política de projetos econômicos e de integração mais ambiciosos. Como pode ser visto, é um projeto global, assentado na diplomacia, mas especialmente nos poderes comercial e financeiro chineses, o que explicita para além das parcerias econômicas, pretensões hegemônicas a nível global nas próximas décadas, onde provavelmente a China voltará a ser “o Reino do Meio”.

Nesse espaço de disputa, mais do que nunca haveria espaço para que a política externa brasileira se movimentasse fazendo o que lhe é mais conhecido. A opção do governo Bolsonaro, entretanto, passou longe dessa possibilidade. Apesar da dependência econômica que o Brasil tem hoje da China, em especial na área do comércio exterior, o país optou por um alinhamento automático subalterno em relação à diplomacia e aos interesses dos EUA. Bolsonaro chegou tão longe que visitou o Taiwan e ofendeu os diplomatas chineses – o que além de não abrir espaços, complicou muito nossa relação com nosso principal parceiro econômico, inclusive na aquisição de vacinas contra o coronavírus. Esse comportamento incongruente gerou também uma certa ruptura da base de apoio do governo Bolsonaro que, mesmo mantendo um alinhamento político com os EUA, possui atualmente demasiados interesses econômicos com os chineses. 

AGENDA PROPOSITIVA

• Retomar, fortalecer e aprofundar processos de integração regional na América Latina (MERCOSUL, CELAC, UNASUL); 

• Reconstruir uma agenda de cooperação com o Sul Global para seu fortalecimento e maior protagonismo internacional, com especial atenção nas relações com a África;

• Negociar com a China no sentido de diversificar as exportações brasileiras e aumentar o conteúdo tecnológico, exigindo transferências tecnológicas em setores chaves da nova revolução tecnológica;

• Equilibrar com os EUA a dependência da China. Demandar deles transferências tecnológicas;

• Acabar com as negociações de tratados de livre comércio com a União Europeia e outros que prejudicam a nossa já precária matriz industrial

Acesse os boletins anteriores:

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