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Gate: Brasil, nem democracia, nem autoritarismo


Gate: Brasil, nem democracia, nem autoritarismo

Manifestantes pedem intervenção militar no Brasil.

Contribuição da equipe GATE - ESTADO HÍBRIDO – para o debate entrega ao GATE em 11 de fevereiro de 2021

1- Estado Híbrido, a forma contemporânea do Estado de Exceção

Este boletim aborda alguns pilares importantes da concepção de Estado em face da reconfiguração do período histórico recente (século XXI), com a ascensão no Brasil e em âmbito internacional de experiências autoritárias de direita e de extrema direita pela via do voto, por meio da politização e partidarização do Poder Judiciário (dimensão institucional) e do crescente “capitalismo de plataforma”, mais especificamente das mídias digitais na ação política contemporânea (dimensão comunicativa).

Embora a chamada “democracia liberal” historicamente seja parcial, assimétrica e vinculada ao regime de apropriação privada dos fatores produtivos (terra, trabalho, excedente), a perspectiva “democrática” pode impactar a relação entre as classes sociais e o “conflito distributivo”. Já a variante “autoritarismo” via de regra – no capitalismo – beneficia, de forma aberta, o Capital.

Nesse sentido, embora desde os primórdios da “era democrática” as assimetrias – econômicas e de poder – sempre tenham sido marcantes, o que implicou certo hibridismo, real e informal, de poder entre as classes proprietárias e as classes trabalhadoras, as conquistas operárias desde o século XIX alteraram parcialmente esse cenário.

Particularmente neste século XXI o sentido de hibridismo tem se reconfigurado, tendo em vista a quarta revolução industrial, a hegemonia das ideias neoliberais e conservadoras, a lógica do rentismo e o progressivo desbalanceamento entre as classes sociais desde o fim da bipolaridade mundial, com ampla supremacia ao capital perante o trabalho.

Estados híbridos seriam, portanto, aqueles que não teriam arenas de contestação suficientemente abertas, livres, relativamente justas e com participação amplificada. Além disso, forças policiais, militares e tribunais tratariam partidos e atores sociais de forma seletiva, e os meios de comunicação mobilizariam argumentos facciosos em relação aos atores políticos, notadamente de esquerda e aos interesses voltados aos direitos populares. 

2- As instituições democráticas estão “funcionando”?

É frequente nos debates midiáticos e mesmo acadêmicos sobre as características do Estado na contemporaneidade a ênfase de que o Brasil é uma sociedade democrática porque as instituições estariam funcionando regularmente. Para tanto, são elencadas algumas características:  i) o Parlamento estaria em funcionamento; ii) o Judiciário atuaria dentro da normalidade e com autonomia; iii) a imprensa seria livre; iv) os partidos políticos (no contexto do pluripartidarismo) atuariam livremente; v) haveria liberdade de ir e vir, de crença e de expressão; e vi) o “regime da maioria”, pela via eleitoral, estaria em pleno funcionamento.

A questão é avaliar se esses elementos seriam suficientes para a vigência democrática ou se, por baixo desses aspectos formais e institucionais o funcionamento da democracia não esconderia poderes profundamente assimétricos e autoritários, que representariam espécie de “distração”. Isso porque estaria ocorrendo uma nova dinâmica de poder, que estaria sendo implantada de forma autoritária, porém no interior da vigência democrático/institucional.

Conforme literatura da ciência política, a história política brasileira seria marcada pelo movimento pendular de longa duração, indo do autoritarismo a uma democracia que de fato não se institucionalizaria nem se enraizaria na cultura política brasileira. No conhecido livro Como as democracias morrem, Levitszy e Ziblatt argumentam que normas legais e arranjos institucionais são fundamentais, mas não suficientes para garantir a democracia, pois haveria de se preservar e estimular códigos de conduta e regras informais democráticas.

Partindo do conceito de Estado de Exceção, analisado pelo pensador italiano Giorgio Agamben, sabe-se que os governantes podem atuar dentro do ordenamento jurídico e, simultaneamente, estar fora do mesmo para decidir as medidas de exceção. Essa seria uma das características do que denominamos Estado Híbrido, isto é, quando alguns aspectos constitutivos do Estado de Exceção, definido a partir da suspensão de direitos, mantêm algumas normas “democráticas” em funcionamento, implantando uma nova forma de prática gerencial/ideológica, de cunho autoritário, para governar.

Nessas condições, entende-se que o Brasil pode ser classificado contemporaneamente como Estado Híbrido: forma que vem se processando desde o período dos governos Lula (em oposição a ele) até a grave crise política, institucional, sanitária e econômica atual, após a eleição de Jair Bolsonaro e a insurgência de elementos característicos do Estado de Exceção no Brasil.

3- O ativismo do Poder Judiciário

Especificamente sobre o Poder Judiciário, embora caracterizado por múltiplos interesses e configurações, sua atuação tem superado, em muito, o clássico conceito de “judicialização da política”, uma vez que atua crescentemente de forma facciosa, ativamente como espécie de “partidos políticos” (no plural) vinculados a interesses específicos, notadamente das elites.

Muito além da conhecida “judicialização da política”, reitere-se, os aparatos judiciários - no Estado híbrido - têm atuado como participantes ativos em busca de incidir: nos resultados eleitorais; nas narrativas dos grupos em disputa (de forma assimétrica); naquilo que se chama de “opinião pública”; e sobretudo suas ações voltam-se a produzir fatos políticos a serem reverberados - como verdade - pelos aparelhos privados de hegemonia (caso da mídia, das redes sociais, entre outros).

O chamado “lawfare” é nada mais que a expressão mais visível desse processo que, contudo, é muito mais sofisticado e complexo tendo em vista os seguintes aspectos: perfil social (de classe) do poder judiciário; papel dos aparatos judiciários de “blindagem as elites e criminalização dos pobres” (prisão em massa e genocídio); instrumento de poder político/institucional pelos magistrados, que compõem  camada acima da lei (desrespeito a tetos orçamentários, manuseio assimétrico de recursos públicos, privilégios e ausência de qualquer controle social). Nesse sentido, o Judiciário constitui a forma legal do domínio de classes em suas inúmeras dimensões, embora com contradições e tensões. Exemplo cristalino, no Brasil, é a Operação Lava Jato (OLJ), que visa criminalizar adversários, tomados como inimigos, em favor de grupos empresariais específicos e seus representantes políticos. Tais ações, contudo, se dão “em nome da lei” (como afirma A. Agamben). A destruição do setor de infraestrutura (público e privado), a partir dos interesses dos EUA, foi um dos objetivos centrais da OLJ.

Salienta-se que a crítica aqui encampada nada tem a ver com a existência per se da instituição Poder Judiciário. Desde Montesquieu e de sua teoria dos “freios e contrapesos” é pacífico entre qualquer analista minimamente informado que o Poder Judiciário é importante para a própria conservação do estado democrático.

A crítica que se faz aqui está direcionada ao uso político da máquina do judiciário. O que faz com que o Estado híbrido, sob o prisma do Judiciário, atue de forma a (reitere-se): criminalizar adversários (tomados como inimigos), abrindo caminho para aliados; produzir fatos políticos (caso de operações de busca e apreensão, prisões temporárias, entre outras); modelar a opinião de pessoas comuns e de “formadores de opinião” (o que inclui redes sociais); incidir em resultados eleitorais; entre outras formas. Deve-se notar que as “formalidades” do Estado de Direito Democrático são em larga medida preservadas, mas os conteúdos das decisões e o controle sobre a agenda e sobre os processos são vigorosamente assimétricos, pouco transparentes e autoritários.

4- Capitalismo de plataforma como estrutura funcional ao Estado Híbrido

Considerando a importância da opinião em uma sociedade cada vez mais midiática e conectada, caso do Brasil, identifica-se mudança fundamental na apropriação das plataformas para a ação política. Nesse sentido, as manifestações de junho de 2013 podem ser consideradas marco fundamental nos estudos sobre o uso das mídias digitais nos debates/embates políticos. Para além das motivações desses protestos, é fundamental compreender o papel das mídias digitais, considerando que seus desdobramentos foram fundamentais para os embates ocorridos durante as eleições de 2014, e mais ainda em 2018. Foi a partir daquele momento que os campos da direita e da extrema direita ocuparam de forma mais sistemática as redes para apresentar sua agenda, organizar seus grupos, articular manifestações de rua, entre outras ações. À época foram tratados como grupos isolados, mas com o passar do tempo começaram a ganhar espaço nas redes sociais e entraram decisivamente nas disputas político/ideológicas.

Usando estratégias discursivas eficazes, esses grupos contaram – sabemos hoje – com grande e decisivo financiamento da extrema direita internacional e de grupos empresariais e dominaram Facebook, Twitter e Youtube, e posteriormente WhatsApp e Instagram, apenas para citar as redes mais conhecidas. Suas narrativas propagaram/propagam discursos de ódio, racismo, misoginia, homofobia, construindo cenário de intolerância nas redes, nas ruas e nos debates públicos e mesmo privados, tornando-se – seus postulados – “senso comum”. Erigiram verdadeiras “pós-verdades”, sem quaisquer fundamentos na realidade empírica (casos da “mamadeira de piroca”, “kit gay”, e muitas outras).

Nesse contexto, nota-se a criação de verdadeiras “câmaras de eco”, quando os indivíduos buscam informações que estejam de acordo com suas ideias, crenças e opiniões, que são reforçadas pela repetição no interior de uma rede em que não há possibilidade de vozes dissonantes ou questionadoras. Quando eventualmente ocorrem questionamentos, são rapidamente censurados ou desautorizados, mantendo espécie de “ciclo fechado” (ou “bolhas” de crenças e opiniões). Esse processo é facilitado pelos mecanismos de busca a partir dos quais as redes acessadas estão cada vez mais influenciadas pela “machine learning”, por bolhas de filtragem. Os algoritmos ocupam papel fundamental nessa seleção e direcionamento ao recomendar conteúdos que estejam em consonância com o pensamento induzido dos indivíduos. Esse processo pode ser caracterizado pela confirmação de um viés. Portanto, nesse tipo de ambiente não se entra em contato com a diversidade de opiniões e sim apenas são reforçadas visões previamente definidas (e induzidas, reitere-se),  marcadas pela concordância.

Os ambientes de “câmara de eco” funcionam como espaços de doutrinação e é por isso que as perspectivas contrárias são bloqueadas por aqueles que exercem a filtragem das informações. Esse aspecto é fundamental para compreender a derrogação do conceito de sociedade democrática, cuja base é o debate entre diferentes opiniões no interior de um conjunto de regras que permitam que cidadãos expressem livremente suas opiniões à luz da realidade e da percepção múltipla sobre a mesma: trata-se de elemento basilar da “democracia liberal”, cada vez mais derrogado. Igualmente, a cláusula pétrea da privacidade é vigorosamente derrogada. Esses aspectos são fundamentais, considerando que parte do discurso negacionista tão presente na atualidade se funda em suposta liberdade de expressão, mas difunde informações falsas, boatos e desinformação (e pós-verdades) sem qualquer base factual, o que vai na contramão da dinâmica democrática.

Essas questões são fundamentais para a compreensão da influência das redes digitais na construção do campo da extrema direita no Brasil. O governo dos EUA, a mídia hegemônica, o Poder Judiciário (as altas cortes), a elite econômica nacional e estrangeira e as “classes médias superiores” foram atores centrais na construção de uma narrativa que legitimou o golpe desferido em 2016 contra a presidenta eleita democraticamente.

Portanto, o conceito de Estado Híbrido é ao mesmo tempo antigo e contemporâneo. No tempo presente se confundem dimensões democráticas e autoritárias; formas institucionais e conteúdos discricionários; regra da maioria com profunda manipulação das “mentes e dos corações”; utilização de artifícios ilegais, ilegítimos e mesmo imorais (à luz da moralidade pública) que violam profundamente a privacidade dos cidadãos (reitere-se), tornados algoritmos; o poder totalizante do grande capital (plutocracia) sobre a política e as instituições; a instrumentalização seletiva de poderes e os órgãos do Estado (instituições judiciárias, militares e policiais), “em nome da lei”, em busca dos “inimigos” da “pátria”, da “moral” e dos “bons costumes”.

Compreender esse processo implicará também compreender as formas contemporâneas de pensar e fazer política, a começar pelos próprios conceitos que os atores políticos devem se utilizar perante os embates sociais.



Assinam este boletim os pesquisadores:

•Francisco César Pinto da Fonseca (cientista social, Mestre em ciência política/Unicamp, Doutor em História Social/USP. Professor de Ciência Política na FGV/Eaesp e PUC-SP.

•Greiner T. M. Costa (engenheiro, Doutor em Política Científica e Tecnológica / Unicamp).

•Helga Almeida (Cientista política, Doutora em Ciência Política / UFMG e professora da Universidade Federal do Vale do São Francisco /Univasf).

•Rosemary Segurado (cientista política, doutora em Ciências sociais pela PUCSP, professora do PEPG de Ciências Sociais da PUC e coordenadora do Curso Mídia, Política e Sociedade da Fesps. Também sou editora da REvista Aurora da PUCSP).

•Tathiana S. Chicarino (cientista política, Doutora e Mestra em Ciências Sociais (PUC/SP), professora da FESP-SP).

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