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Gate responde: As cidades serão as mesmas no pós-pandemia?


Gate responde: As cidades serão as mesmas no pós-pandemia?

Foto: Reprodução / Digitearte

As cidades serão as mesmas depois da pandemia? Está no ar a décima edição do Boletim Gate, produzido pelo Grupo de Acompanhamento de Temas Estratégicos do Instituto Lula. 

Assinado por Emílio Chernavsky, Marcelo Manzano, Matias Cardomingo, Nilce Aravecchia-Botas e Raul da Silva Ventura Neto, o documento caracteriza o período pós-pandemia pela perspectiva da organização das cidades, a partir de marcadores deste tempo — home office, serviços de delivery e capitalismo de plataforma.

Acesse o Boletim em PDF no ISSUU do Instituto Lula, nossa plataforma de publicação de textos. Você também pode fazer o download do documento clicando aqui.

Ao final desta página, você encontra o link para os outros nove boletins produzidos pelo Gate.

Leia abaixo na íntegra:

As cidades serão as mesmas depois da pandemia?

Home office, serviços de delivery e capitalismo de plataforma nos obrigam a repensar a organização das cidades no pós-pandemia

As desigualdades econômicas no Brasil revelam-se não somente entre metrópoles ricas e municípios muito pobres em áreas semi rurais. No interior das grandes cidades a desigualdade social também é visível. Os bairros onde mora a alta renda oferecem melhor qualidade dos serviços públicos como asfalto, energia elétrica, coleta de lixo, além da melhor infraestrutura dos aparelhos de saúde e educação. As áreas onde estão as sedes dos bancos, os grandes escritórios de advocacia ou de publicidade também são as mais organizadas. Mesmo a implantação de rodovias sempre esteve relacionada à localização de grandes indústrias. Tudo isso faz com as cidades sejam organizadas para as empresas dos ricos, para os negócios dos ricos e para a habitação dos ricos. E isso encarece o preço da terra nas localidades com mais infraestrutura.

E é justamente por conta desse encarecimento que, já desde a década de 1980, é possível identificar algumas mudanças no antigo padrão de concentração  de riqueza e serviços em áreas centrais. Devido ao encarecimento dos terrenos nos pólos metropolitanos mais consolidados, muitas indústrias foram se transferindo para cidades médias. No que diz respeito à moradia, famílias ricas e de classe média, fugindo do trânsito, do barulho, da insegurança ou da poluição,  foram morar em condomínios fechados longe dos centros urbanos. Outro fenômeno acompanhou essas mudanças, a implantação dos grandes shopping centers. Esse processo gerou o esvaziamento das antigas áreas de comércio nos velhos centros das cidades, das áreas industriais e também de áreas residenciais.

A urbanização vai se dispersando pelo território, intercalando espaços ocupados e bastante usados, outros abandonados, e conforme nos afastamos dos centros identificamos também terrenos ou glebas inteiras vazias. Um dos exemplos desse processo é a extensa região que combina as áreas metropolitanas de São Paulo, Santos e Campinas, cujo funcionamento exige uma enorme estrutura de rodovias e de logística.

O sistema precisa do trabalhador, que mora longe

Para que esse sistema funcione, ele necessita de uma gama variada de serviços, oferecidos por trabalhadores empregados na sua manutenção. Os trabalhadores que acabam tendo que morar em áreas distantes do local de trabalho devido ao preço dos terrenos enfrentam o transporte público ruim ou insuficiente. É o caso de milhares de mulheres pobres, em sua maioria negras, empregadas em atividades domésticas mal pagas.

Outro problema é que esse tipo de urbanização gera grande impacto no  meio ambiente, seja pela ocupação extensiva que avança para áreas de proteção ambiental, seja pelo excesso de gases poluentes lançados na atmosfera devido ao intenso tráfego de veículos motorizados. A crise econômica e o aprofundamento de uma agenda de ajuste fiscal a partir de 2016, gerou aumento do desemprego, que cresceu ainda mais com a chegada da pandemia e a crise sanitária. 

Pandemia delivery

Devido às grandes distâncias características dessas formas de ocupação e ao trânsito em decorrência delas, a demanda por serviços de entrega que já vinha aumentando, teve novo incremento. Enquanto os ricos, a classe média e os trabalhadores formais puderam optar pelo "home office" para se proteger do contágio pelo vírus da Covid-19, os entregadores assumiram os riscos por não ter outra opção. Aos "motoboys" de antes se juntaram os ciclistas, sem vínculos trabalhistas, todos expostos ao trânsito violento e agora à doença. 

A manutenção do home office e do comércio pela internet poderá impactar na logística de distribuição, demandando novos espaços de estoque nas rodovias e sobrecarregando o transporte de cargas e os serviços de entrega. Essa tendência ainda afetará os grandes centros comerciais como shopping centers, cuja frequência deverá sofrer queda inversamente proporcional ao crescimento do e-comerce, produzindo novos espaços de construções vazias nas áreas urbanas consolidadas. 

Retrocessos em transporte e moradia

No caso do serviço doméstico parece evidente que as trabalhadoras pobres que respondem a esse setor ficarão ainda sujeitas à distância entre seus locais de moradia e as casas das famílias contratantes. Ou pior, poderemos retroceder ao constrangimento da moradia no local de serviço, que antes da regulamentação desse trabalho apresentava-se como algo recorrente num país que convive com naturalidade sua herança escravocrata.

Quem pagou o pato?

Nesse ritmo, a conta das crises, econômica e sanitária, recairá novamente nos trabalhadores e também no meio ambiente, já sobrecarregado pela emissão de gases poluentes, pelo desequilíbrio gerado pela urbanização dispersa e predatória.

A tendência cada vez maior dessa fragmentação exige uma mudança na forma de pensar a vida na cidade, que leve em conta o cuidado com as pessoas e com o meio ambiente.  Ocupar as construções e os espaços vazios com atividades do cotidiano, como a produção de alimentos, os cuidados com as crianças e com os idosos, pode gerar novas formas de ocupação integrando bairros e contribuindo com a diminuição dos deslocamentos de mercadorias e de pessoas. 

Cidades de 15 minutos

Um planejamento integrado de políticas públicas, para garantir renda e estimular a convivência de diversas atividades na mesma rua ou no mesmo bairro, pode aproveitar essa condição da urbanização dispersa e se antecipar em diretrizes para ocupar espaços que tendem a ficar vazios, como é o caso dos shopping centers, ou os edifícios de escritório nas grandes cidades. Imaginar modos de vida que diminuam os deslocamentos, que gerem menos impacto no meio ambiente, e mais oportunidades de renda que promovam a coletividade e boas condições de trabalho. Um exemplo de onde esse esforço pode nos levar é o conceito de cidade de 15 minutos, advogado pela prefeita parisiense, Anne Hidalgo, como modelo de planejamento urbano para o pós-pandemia. Em alguma medida, isso é o que acontece em cidades menores, onde os impactos da urbanização, como os congestionamentos, a poluição e as enchentes não são sentidos no mesmo grau.

É necessário repensar a cidade

Num país desigual como o Brasil, essa transformação precisa vir acompanhada de programas de garantia de renda integrados às políticas de regulação do uso do solo. O reconhecimento do caráter multifuncional da produção agrícola no contexto da urbanização dispersa, de forma a potencializar suas dinâmicas culturais e ecológicas, pode gerar formas mais ativas de sociabilidade para reduzir a vulnerabilidade das populações submetidas a condições muito precárias de existência. Mas isso implicará em mudanças legislativas, operacionais e administrativas, já que a agricultura é tema de políticas regionais e nacionais, e o uso do solo urbano é assunto municipal. 

Podemos estar diante de mudanças econômicas, sociais e políticas profundas, que exigirão a reorganização das formas de representação dos grupos sociais em relação a seus lugares de moradia e trabalho. Os instrumentos de regulação urbana que contamos hoje, como o Estatuto da Cidade, o Plano Diretor e as leis municipais de uso e ocupação do solo deverão ser repensados para que estejam à altura do quadro que se apresenta. 

Autores:

  • Emílio Chernavsky (economista, doutor em Economia / USP, assessor do PT na Câmara Federal)

  • Marcelo Manzano (economista, doutor em Desenvolvimento Econômico / Unicamp; Pesquisador do CESIT e coordenador da Maestria FPA/Flacso)

  • Matias Cardomingo (economista, pesquisador do Made - FEA / USP, presidente do Diretório Zonal do PT Pinheiros) 

  • Nilce Aravecchia-Botas (arquiteta, urbanista, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP) 

  • Raul da Silva Ventura Neto (arquiteto, urbanista, doutor em Desenvolvimento Econômico e professor da Universidade Federal do Pará)

Acesse os boletins anteriores:

Quem tem medo do Mercosul?
Como fica a democracia no capitalismo de plataforma e vigilância 
Trabalho nas plataformas digitais 
A longa queda da indústria brasileira 
Brasil: nem democracia, nem autoritarismo 
O papel do planejamento na superação da crise ambiental  
Mudanças estruturais no mundo do trabalho: determinantes e tendências 
Teto de gastos e a destruição do Estado Social Cidadão de 1988 
Brasil e América Latina: dilemas da região a partir da disputa entre EUA e China 

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