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Gate: A longa queda da indústria brasileira

Boletim nº 6 do Grupo de Acompanhamento de Temas Estratégicos do Instituto Lula


Gate: A longa queda da indústria brasileira

Boletim nº 6 do Grupo de Acompanhamento de Temas Estratégicos (Gate) do Instituto Lula

Por Emílio Chernavsky, Marcelo P. F. Manzano e Matias Cardomingo*

A LONGA QUEDA DA INDÚSTRIA BRASILEIRA

Neste início de 2021 o país foi tomado de surpresa pelo anúncio do encerramento das atividades da Ford no Brasil. Ícone maior da indústria automobilística mundial, presente no Brasil desde 1919, a empresa se juntou a outras milhares que têm preferido fechar as portas a arriscar capital em um mercado em franca deterioração.

É claro que a saída da Ford envolve uma série de outras questões relacionadas às transformações mais gerais que alcançam as cadeias mundiais de produção do setor automotivo (novos competidores, transição para o motor elétrico, regionalização das cadeias produtivas, entre outras). Mas é ainda mais evidente que o fechamento das três fábricas da empresa que ainda operavam no Brasil (Taubaté-SP, Camaçari-BA e Horizonte-CE) é expressão do agravamento do processo de desindustrialização que se estende desde os governos neoliberais dos dois Fernandos (Collor e FHC).

Um processo dessa magnitude tem diversas causas e diversos especialistas têm feito análises muito acuradas a esse respeito (entre outros, veja aqui ou aqui). De forma resumida, podemos dizer, entretanto, que a precoce desindustrialização da economia brasileira tem seis dimensões principais, conforme explicado abaixo:

Ambiente macroeconômico desfavorável

Desde a implantação do Plano Real em 1994 até a crise recessiva de 2015/2016 o câmbio brasileiro atravessou longos períodos de valorização real (embora desde 1999 com trajetória altamente volátil), o que fez corroer a competitividade da indústria brasileira, induzindo a um processo de “especialização regressiva” da manufatura nacional que se manifestava por duas vias principais: a perda de mercado de bens finais para competidores estrangeiros e a substituição de bens intermediários nacionais por importados.

Além disso, como ao longo desses mais de vinte anos as taxas de juros praticadas no país mantiveram-se sistematicamente elevadas, os investimentos produtivos de maior fulcro e complexidade não foram suficientemente estimulados e se mantiveram em patamares aquém daqueles que seriam necessários para evitar o envelhecimento precoce do parque produtivo nacional. Mesmo as meritórias políticas de crédito do BNDES entre 2007 e 2014, que foram fundamentais para dinamizar setores estratégicos da indústria nacional, direcionavam-se fundamentalmente a segmentos já estabelecidos, deixando em um segundo plano o financiamento de novas frentes de expansão da indústria.

Nesse contexto, embora em alguns momentos a demanda interna por bens manufaturados tenha crescido de forma robusta, as empresas foram moldando suas estratégias no sentido de ampliar o coeficiente de importação, reduzir o capital imobilizado (menos investimento produtivo) e ampliar os ganhos de tesouraria (mais renda financeira).

Política industrial de farol baixo

Desde o início da experiência neoliberal no Brasil (anos 1990) não se conseguiu implementar uma política industrial de maior amplitude e duração. Em última instância, a despeito de algumas iniciativas importantes nos governos Lula e Dilma - como apolítica de conteúdo local no setor de petróleo e gás, a política para os setores automotivo e de medicamentos, além da introdução de ferramentas para aumentar o impacto das compras públicas - as políticas de apoio e promoção do setor industrial estiveram limitadas a alguns ramos específicos e tiveram dificuldade para deslanchar frente à escassez de instrumentos estatais adequados para dar suporte a planos de maior envergadura, à falta de continuidade em certos casos, e também em decorrência das crescentes restrições regulatórias colocadas pela OMC.

Osteoporose do setor produtivo estatal

À medida que avançou o ideário neoliberal no país, ondas de privatizações trataram de desmontar a coluna cervical do capitalismo brasileiro, qual seja, um sistema produtivo integrado e articulado em torno de holdings estatais (Siderbras, Telebras, Embratel, Engesa, Embraer, Petrobras, Eletrobras, Nuclebras, entre outras) que, alimentado por grandes e duradouros planos de investimento, garantia insumos básicos a preços competitivos e demanda sustentada para um amplo conjunto de empresas privadas no país, especialmente no setor manufatureiro. Sem essa base estruturante do parque produtivo nacional, o setor privado industrial viu seu horizonte de investimentos reduzir-se significativamente e foi obrigado a adotar estratégias defensivas para sobreviver. No limite, em muitos casos (Cofap, Metaleve, Freios Varga, etc.) a simples venda das empresas para concorrentes internacionais tem sido a solução preferida dos seus dirigentes para preservar o patrimônio dos acionistas ou proprietários.

Hegemonia do rentismo

Uma outra dimensão do problema da desindustrialização brasileira diz respeito à proeminência dos interesses rentistas dentro das instituições públicas e privadas desde a crise da dívida externa da década de 1980. Embalados pelos altos ganhos proporcionados pela chamada “ciranda financeira”, as empresas brasileiras foram direcionando suas estratégias de acumulação para esse setor, aplicando recursos excedentes no “over-night” no período de alta inflação, e em operações eventualmente mais complexas no período de juros altos desde a estabilização em 1994, em detrimento de investimentos produtivos, de longa maturação e maior risco. Vale lembrar ainda que esse processo foi em parte agravado pelo fato de ter ocorrido em um momento em que muitas empresas privadas nacionais passavam por transição geracional, entregando o comando às novas gerações de herdeiros, muitos dos quais frequentemente mais afinados com as operações de valorização financeira nos mercados de capitais. Assim, essa mutação do capitalismo brasileiro, em consonância com o movimento global desde meados dos anos 1970 e paralelamente às demais transformações mencionadas, parece ter sido um componente importante para se compreender a “economia política” da desindustrialização. Tais mudanças foram responsáveis não apenas por alterar as estratégias de investimento empresariais, mas também tornar mais unitária entre a classe dirigente privada um consenso macroeconômico ortodoxo que joga contra as possibilidades de retomada do desenvolvimento.

Acirramento da concorrência internacional

A partir da década de 1980, o avanço da globalização e a constituição das cadeias globais de valor tornou muito mais complexa a tarefa de escalar no processo de industrialização. Mais tarde, já ao longo das duas primeiras décadas do século XXI, observou-se um processo de intensificação da concorrência no mercado internacional de bens manufaturados a partir da entrada da China em um número cada vez maior de mercados, cujo efeito se acentuou com a crise financeira de 2008. Para fazer frente aos impactos depressores da crise no comércio internacional, alguns países – notadamente do sul da Ásia e especialmente a China – adotaram políticas bastante agressivas para melhorar a inserção de seus produtos industriais em terceiros mercados. Como o Brasil e outras economias latino-americanas haviam abandonado a maior parte de suas políticas protecionistas e vinham adotando estratégias calcadas principalmente na expansão do mercado interno, acabaram absorvendo parcelas crescentes de manufaturados estrangeiros, em um processo que resultou em mudança estrutural do setor industrial doméstico em detrimento do conteúdo nacional e em favor de bens finais e intermediários oriundos do exterior.

Impacto da Lava Jato sobre as cadeias de petróleo e gás e da construção pesada

Desde março de 2014, as investigações conduzidas em torno da operação Lava Jato, inicialmente focadas nos contratos entre a Petrobras e as grandes construtoras que lhe prestavam serviços, levaram à paralisação de muitos investimentos da estatal em andamento e ao cancelamento ou suspensão por tempo indeterminado de grande parte daqueles programados. A forte queda na demanda teve impacto profundo sobre os fornecedores da cadeia de petróleo e gás, e também sobre o setor de construção pesada, cujas grandes empresas, igualmente sob investigação, se viram praticamente alijadas do mercado de crédito e foram levadas à falência ou à recuperação judicial, gerando impacto em outros setores em que atuavam, como o de infraestrutura.

Por fim, a Petrobras passou a sofrer um desmonte continuado desde o golpe de 2016, quando se inseriu no vocabulário da estatal o conceito de “desinvestimento”. Hoje o foco estratégico da empresa está na produção de óleo cru e o abandono de outras atividades - refino, distribuição, biocombustíveis, entre outros - revela um período de desarticulação da extensa cadeia produtiva que havia sido construída principalmente a partir da descoberta do Pré-Sal.


Assinam este boletim:

Emílio Chernavsky (economista, Doutor em Economia / USP, assessor do PT na Câmara Federal) 

Marcelo P. F. Manzano (economista, Doutor em Desenvolvimento Econômico / Unicamp; Pesquisador do CESIT e coordenador da Maestria FPA/Flacso);

Matias Cardomingo (economista, Mestre em economia/USP, presidente do Diretório Zonal do PT Pinheiros)

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