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Lula: ‘Quando vejo as vidas salvas na Argentina, me dói muito pelo Brasil’

Em encontro virtual com o presidente da Argentina, Alberto Fernández, Lula destacou a diferença no tratamento da pandemia entre os países. “Como é bom cuidar do povo”


Lula: ‘Quando vejo as vidas salvas na Argentina, me dói muito pelo Brasil’

Lula durante debate virtual promovido pela Universidade de Buenos Aires / Foto: Ricardo Stuckert

Em encontro virtual com o presidente da Argentina, Alberto Fernández, Lula destacou a diferença no tratamento da pandemia entre os países. “Como é bom cuidar do povo”

Por Gabriel Valery e Tiago Pereira, da Rede Brasil Atual

“Sonho com um novo mundo. Um mundo com mais humanismo. Não quero ser um algoritmo. Quero ter sentimento, solidariedade, paixão e coração. Não quero ser um número”, disse o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sobre o mundo pós-pandemia do novo coronavírus, em debate on-line promovido pela Universidade de Buenos Aires (UBA).

Junto de Lula, o presidente da Argentina, Alberto Fernández; o prêmio Nobel da Paz, Adolfo Pérez Esquivel; o ministro da Educação da Argentina, Nocolás Trotta; a professora de direito da UBA; Natalia Salvo; o presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados da Argentina, Eduardo Valdés; a jurista brasileira Carol Proner; e a secretária-executiva do Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (Clacso), Karina Batthiany.

Em sua participação no diálogo, intitulado “Pensar a América Latina depois da Pandemia covid-19”, Lula destacou que a Argentina tem, neste momento, algo que o Brasil não tem: um presidente preocupado com sua população. Fernández vem conduzindo o país vizinho com cautela. Adotou medidas sanitárias rígidas de isolamento social para combater a pandemia e medidas econômicas para garantir que a população passe pela pandemia com um mínimo de dignidade. O resultado é claro. A doença tem, na Argentina, as menores taxas de contágio, óbitos e de letalidade entre os membros do continente.

Enquanto o Brasil passa de 55 mil mortos e de 1,2 milhão de infectados, a Argentina tem 36.519 doentes e 1.150 vítimas. A diferença é brutal. “Tenho profundo orgulho de que Alberto está dando uma lição ao mundo. Como é bom cuidar do povo (…) Deixo minha solidariedade às vítimas na Argentina e no Brasil”, disse o ex-presidente brasileiro.

Ainda sobre o futuro pós-pandemia, Lula disse ser um cenário difícil de analisar, mas que tem uma certeza. “Países em que seus governos pensaram mais na população, como a Argentina, sairão desta crise mais fácil. Quando vejo as vidas salvas na Argentina, me dói muito que no Brasil o presidente chega a fazer piada com a tragédia”, disse. Bolsonaro, repetidamente, ridiculariza a pandemia e os mortos, além de ignorar a Ciência e chamar a covid-19 de “gripezinha” – questionado sobre os brasileiros mortos, disse “não ser coveiro” para comentar.

Economia para pessoas

Lula defendeu que a preocupação com a economia em tempos de pandemia é legítima. Mas que é dever do Estado socorrer as pessoas e preservar o máximo de vidas. “Há uma espécie de compreensão de que o momento é de gastar porque a economia existe em função das pessoas. O Estado pode proporcionar recursos e organizar a sociedade para ultrapassar esse momento tão difícil”, defendeu.

Portanto, o ex-presidente vê a ideia de “Estado mínimo” como uma falácia, uma ideia enganosa que, crise após crise, mostra que é ineficaz e excludente. “O Estado mínimo é um dogma. Não encontra explicação e não se justifica. O ‘deus mercado’ é um mito. Mais uma vez mais se revela incapaz de oferecer respostas a problemas do mundo. Exatamente como em 2008 e em todas as crises do capitalismo, o Estado que assume a responsabilidade de salvar.”

A crise do novo coronavírus, conforme Lula, ao seguir a mesma lógica, pode evidenciar, ainda mais, a importância do Estado. “Temos uma crise muito profunda. Queira Deus que os governantes aprendam que o Estado não pode ser colocado exclusivamente aos interesses do capital. A economia deve estar a serviço dos humanos e não o contrário. Essas transformações esperamos por meio da política”.

O ex-presidente encerrou sua fala com uma mensagem de esperança. “Por mais profundas que sejam as crises, depende de nós acendermos a luz das trevas. A política é o instrumento pelo qual podemos transformar sonhos em realidade. O que vai salvar a América Latina é a democracia. Precisamos recuperar a democracia no continente. Com um Estado forte, democrático. A pandemia mostra que o mercado não resolve nada. Quem cuida do povo é o Estado.”

Harmonia com o planeta

Para o ativista argentino e prêmio Nobel da Paz, Adolfo Pérez Esquivel, no mundo pós-pandemia será preciso recuperar a harmonia do ser humano com a natureza. “Sem isso, não vamos superar”, afirmou. Segundo ele, as relações sociais também precisam mudar.

“A devastação tem que cessar. É importante encarar os desafios e trabalhar profundamente nas mudanças que o mundo precisa. Faço um chamado à consciência universal. O chamado é pela coisa comum que está devastada. A crise que temos hoje é uma dívida do nosso povo.”

Fim do lawfare

A advogada e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Carol Proner, disse que a América Latina deve repensar as garantias do sistema de Justiça, de forma a garantir estabilidade democrática. Segundo ela, o continente foi palco de uma perseguição jurídica contra lideranças progressistas – numa referência direta à Lava Jato, que tirou Lula da disputa eleitoral de 2018. Sob o falso pretexto de combater a corrupção, juízes, procuradores e policiais, atuaram para flexibilizar garantias constitucionais.

Em conluio com setores da “mídia hegemônica”, continuou, atuaram para promover a execração pública de líderes políticos, com o objetivo de abrir espaço para governos autoritários e neoliberais. Foi esse esquema que derrubou a ex-presidenta Dilma Rousseff e cassou os direitos políticos de Lula. Também assediou a atual vice-presidenta argentina, Cristina Kirchner, e outros líderes populares pelo continente.

“Enfatizamos, como defensores da democracia e da justiça social, que estamos a favor de uma luta rigorosa e implacável contra a corrupção, que só é possível com autonomia e independência dos organismos de investigação. Autonomias que foram possibilitadas, inclusive, pelos mesmos governos progressistas que foram atacados mais tarde.”

Democracias de baixa intensidade

O ministro da Educação da Argentina, Nicolás Trotta, expôs que, após 2013, o continente latino-americano passou a conviver com “democracias de baixa intensidade”. Antes disso, a região viveu “tempos exuberantes”, de desenvolvimento econômico e social, com integração entre os países. Mas esse modelo também apresentou limitações.

Agora, segundo Trotta, é preciso repensar a “institucionalização” dos processos de integração na América do Sul. Organismos como a União das Nações Sul-Americanas (Unasul) e a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac) foram praticamente desmantelados. Ele também defendeu a necessidade de articular junto ao empresariado comprometido com o desenvolvimento um “maior espaço de geração de riqueza e empregos. Mas tendo o Estado a capacidade de regular e estimular esse movimento.”

Trabalho e vida

O presidente da entidade de trabalhadores argentinos Confederação Geral do Trabalho (CGT), Víctor Santa María, disse que o mundo pós-pandemia precisa redefinir o conceito de “sucesso”. “O sucesso não é quem tem mais dinheiro no banco. Isso ficou demonstrado”. Para os empresários, segundo ele, “o êxito deveria ser medido sobre quem oferece mais oportunidade de empregos para o seu povo.”

Para os trabalhadores, o essencial, neste momento, é lutar pela preservação da vida. Por isso, segundo Santa María, apoiam o governo de Alberto Fernandéz, que vem tomando medidas rígidas de restrição do convívio social, como forma de combater a disseminação da covid-19. “Dessa crise, não sairemos sozinhos. Ou saímos todos, ou seguramente muitos ficarão pelo caminho.”

O mais querido

O deputado Eduardo Valdés, que preside a Comissão de Relações Exteriores da Argentina, afirmou que não houve fronteiras entre Brasil e seu país, quando se tratou de lutar pela liberdade do ex-presidente Lula. No país vizinho, essa batalha foi encabeçada por Esquivel. “O senhor presidente, quero que saiba, é o brasileiro mais querido pelo povo argentino”.

Segundo ele, Lula e Fernandéz, são herdeiros das palavras do ex-presidente argentino Juan Domingos Perón, defensor de um modelo de desenvolvimento autônomo e com inclusão para todo o continente. “Hoje, como diria Perón, o continente está dominado. Tomara que seja Fernandéz aquele que consiga romper com as cadeias da dependência”, afirmou.

Ouça a fala de Lula completa: 

Instituto Lula · Fala de Lula no debate com presidente argentino Alberto Fernández (26 de junho de 2020)

Ou confira o debate na íntegra:

Fala completa de Lula no debate:

“É um privilégio compartilhar este momento com pessoas que fizeram e continuam fazendo tanto para mudar o mundo especialmente a nossa América Latina. Às vezes penso que viemos ao mundo com esta missão: de transformá-lo num lugar melhor para se viver. Um lugar mais humano, mais fraterno, mais solidário, menos desigual. Para muitos de nós, que viemos das camadas populares, que conhecemos o sofrimento e a privação, mais do que uma missão, transformar o mundo é antes de tudo uma questão de necessidade.

Eu não sei como será o mundo depois dessa pandemia, creio que ninguém sabe. Tenho apenas uma certeza: países em que o governo pensou primeiramente na população, como é o caso da Argentina, sairão desta crise em situação melhor do que os que não pensaram. Quando comparo os números da pandemia entre nossos países, penso primeiramente no sofrimento das famílias de mais de 55 mil pessoas que já morreram no Brasil. Nem as guerras em que o Brasil lutou nem qualquer outra doença causou tanta devastação num período tão curto.

Quando vejo quantas vidas foram salvas na Argentina, me dói muito ver meu próprio país desgovernado, com ministros incapazes de agir para proteger nosso povo e um presidente da República que chega a fazer piada com a tragédia. Lamento muito pelo Brasil e cumprimento o presidente Alberto Fernández pela alta responsabilidade com que vem enfrentando a pandemia, por ter mobilizado o país para este combate no momento certo, por resistir às incompreensões e pressões com a coragem que caracteriza um verdadeiro líder.

O mundo sempre precisou de líderes e de sonhos. Não faz tanto tempo assim, aqui na América Latina nós começamos resgatar o antigo sonho de Simon Bolívar, a Pátria Grande como ele dizia nos tempos heroicos da libertação e da independência dos nossos países. Bolívar já antecipava algo que se tornou muito claro ao longo do século passado. Primeiramente quando nossas riquezas naturais foram apropriadas pelo estrangeiro, que interferiam diretamente na nossa soberania, apoiando governos que serviam a seus interesses, ocupando nossos territórios com suas tropas ou apoiando golpes e ditaduras com o mesmo objetivo, sempre que as forças do povo e da soberania levantavam a cabeça.

Foi assim no Brasil, na Argentina, no Chile, na Bolívia, no Paraguai, no Peru, no Uruguai.

Foi nesse período que nós, na América Latina, começamos a conversar entre nós, olhando para nossas semelhanças, para a complementariedade de nossas economias, começamos a nos enxergar como vizinhos e parceiros. Começamos a conhecer nossa força e a sonhar o nosso próprio sonho de unidade.

Começamos pelos primeiros passos, fortalecendo o Mercosul e o comércio regional. Alguns números confirmam este movimento: em apenas dez anos, a partir de 2003, o fluxo de comércio do Brasil com o Mercosul passou de 10 bilhões de dólares para 50 bilhões. Na mesma proporção cresceu nosso comércio com os países da América do Sul, de 15 bilhões de dólares para 73 bilhões. E de 20 bilhões de dólares para 94 bilhões com o conjunto de países da América Latina e Caribe.

Estes números correspondem exatamente ao avanço das relações políticas entre nossos países.

Porque logo em seguida ao fortalecimento do Mercosul nós partimos para a criação da Unasul e, em seguida, da Comunidade de Estados Latino-Americanos e do Caribe, a Celac. Pela primeira vez criamos organismos internacionais em nossa região sem pedir licença aos Estados Unidos. Porque sabíamos o que queríamos e principalmente o que não queríamos. Rejeitamos soberanamente a ideia da Alca, que manteria nossas economias e principalmente a produção industrial subordinadas aos interesses norte-americanos. E porque queríamos decidir soberanamente os meios de convivência pacífica entre nossos países, criamos o Conselho de Defesa da Unasul.

Foi o sonho de Bolívar que animou companheiros saudosos como Nestor Kirchner, Hugo Chávez, ao quais presto minha homenagem neste momento. A eles nos juntamos e também Evo Morales, Rafael Correia, Fernando Lugo, Tabaré Vasquez, Pepe Mujica, Ricardo Lagos, Michele Bachelet e tantos outros nesta construção.

Olhando para trás, para o quanto avançamos e contrariamos interesses, é impossível atribuir a mera coincidência que tantos governos progressistas e populares tenham sido alvo de revezes políticos e golpes de estado nos anos recentes em nossa região.

E foram golpes de novo tipo, que nos surpreenderam pela utilização de instituições da democracia contra a democracia, pela utilização da mídia para desinformar e mentir, com apoio escancarado do poder financeiro global e de seus representantes em nossos próprios países.

Então eu chego à conclusão de que, mesmo que tenhamos feito quase que uma revolução silenciosa no Brasil para mudar a vida do povo, não conseguimos impedir que as instituições da democracia fossem utilizadas contra a democracia e o povo, mais uma vez em nossa história.

E que isso só foi possível com a participação direta, muito forte, das famílias que dominam a mídia, de corporações econômicas, do sistema financeiro e de interesses geopolíticos contrariados pelo que vínhamos fazendo em tantos países da América Latina para transformar a vida de nossas populações.

Eu mantenho e fortaleço a esperança quando vejo, por exemplo, como o povo argentino respondeu nas urnas ao fracasso retumbante que foi a volta do neoliberalismo.

Quando vejo o povo do Chile exigindo com muita força uma profunda reforma política, social e econômica, quando vejo que apesar das mentiras e dos golpes sucessivos, os partidos dos companheiros Rafael Correia e Evo Morales despontam como favoritos na preferência popular, e por isso mesmo insistem em golpeá-los por meio de farsas judiciais e institucionais.

Todos os seres humanos estão sujeitos a contrair o vírus, mas é entre os mais pobres que ele produz sua mortal devastação.

Há uma espécie de compreensão geral de que o momento é de gastar sem limites porque a vida não tem preço e a economia existe, afinal, em função das pessoas, não apenas dos números. E é o estado, em última análise, que pode proporcionar os recursos e organizar a sociedade para atravessar este momento tão difícil na história recente da humanidade.

O dogma do estado mínimo é apenas isso, um dogma, algo que não encontra explicação nem se justifica na vida real. O mito do deus mercado é apenas um mito, pois uma vez mais ele se revela incapaz de oferecer respostas para os problemas do mundo em que vivemos.

Exatamente como ocorreu na crise do Lehman Brothers em 2008 e em todas as crises sistêmicas do capitalismo das últimas décadas, é o estado que assume a conta.

Tive o privilégio de conversar sobre esse tema com o Papa Francisco e percebi que ele se dedica com alma a mobilizar os jovens economistas para encontrar saídas humanas diante deste que é o maior problema da humanidade. Sabemos que não é tarefa apenas para os economistas e as pessoas de boa vontade. Tem de envolver a (universidade) os intelectuais, os artistas, partidos políticos, sindicatos, movimentos sociais e igrejas.

Tive muito tempo recentemente para ler, estudar e refletir sobre essas questões. Foi a maneira que encontrei para tornar úteis os 580 dias em que estive preso, e aproveito mais uma vez para agradecer a solidariedade presidente Alberto Fernandez e do prêmio Nobel da Paz Adolfo Perez Esquivel, e tantos outros que se levantaram contra a ilegalidade daquela prisão.

A experiência me faz lembrar do que ocorreu em 2009, no auge da crise do sistema financeiro global.

Eu me recordo das reuniões do G-20 em Londres e Pitsburgh, quando os presidentes e primeiros-ministros assinamos um compromisso formal com a geração de empregos, com o socorro aos que perderam a casa e o emprego, com investimentos para a recuperação da economia. E tudo o que vimos foi o socorro ao sistema financeiro, trilhões de dólares que poderiam alimentar gerações de seres humanos e que foram utilizados para salvar os grandes bancos de uma crise que eles mesmo haviam criado com sua ganância sem limites.

A crise atual é ainda mais profunda, sem dúvida, e queira deus que desta vez os governantes do mundo aprendam algo antes que seja tarde demais. Aprendam que o estado não pode mais ser colocado exclusivamente a serviço dos interesses do capital. Aprendam que a economia tem de estar a serviço dos seres humanos e não o contrário.

Essas transformações que esperamos, e pelas quais muitos de nós lutamos toda uma vida, só podem ser realizadas, acredito, por meio da ação política.

Esta palavra e este instrumento de mediação civilizada de interesses que tem sido sistematicamente desprezada, desqualificada e criminalizada em tantos países, mas especialmente em nossa América Latina, tem de ser recuperada em sua essência. Ou voltamos a exercer a política em seu sentido histórico mais elevado, ou regressaremos à barbárie.

E esta é, a meu ver, a terceira lição que podemos aprender com a pandemia que se abateu sobre nós. Por mais profundas que sejam as crises, por mais escuro que esteja, depende de nós acender a luz nas trevas. A política, em última análise, é o instrumento pelo qual podemos transformar os sonhos em realidade.
E creio que nunca foi tão necessário sonhar e seguir lutando para construir um mundo melhor do que este em que vivemos.

Eu acho que o que vai salvar a América Latina depois da pandemia é uma palavra chamada democracia. Uma democracia de Estado forte pra cuidar do povo. Porque o que essa crise demonstrou foi que o mercado não vai salvar a vida de ninguém.”

Luiz Inácio Lula da Silva

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