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Lula representa a ideia de outro Brasil possível, diz Dilma

Em entrevista à jornalista Cathy dos Santos, do jornal L´Humanité, a ex-presidenta também denunciou o caráter antidemocrático, antissocial e antinacional do governo Bolsonaro


Lula representa a ideia de outro Brasil possível, diz Dilma

Foto: Ricardo Stuckert

Em entrevista à jornalista Cathy dos Santos, do jornal L´Humanité, a ex-presidenta do Brasil, Dilma Rousseff, denunciou o caráter antidemocrático, antissocial e antinacional do governo Bolsonaro e defendeu a libertação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva da injusta prisão politica a que foi condenado.

Dilma foi a convidada de honra da Festa do Humanité, grande evento político e cultural realizado pelos comunistas franceses há quase 90 anos. Num auditório superlotado, ela eletrizou os presentes ao afirmar que “o neoliberalismo e o neofascismo são irmãos siameses”

Tradução de José Reinaldo Carvalho para Resistência

Humanité: Senhora Presidente, já se passaram nove meses desde que a extrema direita passou a governar o Brasil. O Relator Especial para a Liberdade de Expressão da Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos, Edison Lanza, expressou sua preocupação com “um ataque ao Brasil aberto, democrático e plural construído desde a Constituição de 1988 “. Qual é a natureza desses ataques?

Dilma Rousseff: Eles cobrem um amplo espectro. Essas agressões afetam as mulheres de uma maneira extremamente misógina, como demonstrado pelas declarações do presidente Jair Bolsonaro contra Brigitte Macron e a Alta Comissária da ONU para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet. Bolsonaro trata de maneira preocupante sobre a tortura, os assassinatos políticos e a ditadura militar. Ele defende claramente o ódio e a violência. Ele ameaça a Constituição quando declara que basta um cabo e um soldado para fechar o parlamento brasileiro. Ele diz que o grande problema do Brasil é não ter matado cem mil presos políticos. Quanto aos direitos sociais, ele tem uma posição muito clara. Ele e seu governo dizem que sentem pena dos empresários porque, aos seus olhos, eles seriam explorados pelo Estado. Eles defendem a redução dos direitos dos trabalhadores, enquanto sua precarização já é importante. A proteção do meio ambiente, da Amazônia, dos povos indígenas é um absurdo para Jair Bolsonaro. Todas essas agressões ataques testemunham seu imenso desprezo pelo debate e as opiniões diferentes. O governo acredita que a Constituição Cidadã de 1988 é responsável pelos “absurdos”, segundo sua expressão deles, pelas conquistas dos governos do Partido dos Trabalhadores. A homofobia é muito importante porque Bolsonaro e seu executivo não têm consideração pelas diferenças. Eles não veem a sociedade de maneira igualitária

Em 4 de setembro, a Senhora participou de um simpósio do PT, do Partido Comunista do Brasil e do Partido do Socialismo e da Liberdade. Nesta ocasião, declarou que “o Brasil e sua soberania estão sob ataque”. Quais os setores visados?

Naquele dia, lançamos um manifesto em defesa da soberania no Brasil. Ela está ameaçada, como estão os direitos sociais. Ora, a soberania é a base da nação brasileira. Três questões me parecem fundamentais. Primeiro, há a privatização das empresas nacionais, o que equivale à desnacionalização. A maior empresa brasileira, a Petrobras, é a sétima maior empresa de petróleo do mundo. Ela desenvolveu sua própria tecnologia para explorar petróleo em águas profundas. Seus recursos garantem a independência energética do país. Eles permitem um financiamento significativo para saúde e educação. A venda da Petrobras beneficiará primeiramente as grandes empresas de petróleo privadas. Sua privatização compromete o futuro do nosso país. Eu poderia falar também das privatizações dos correios, do sistema elétrico ou dos grandes bancos públicos. O outro ataque à soberania é estratégico: trata-se do meio ambiente e dos povos indígenas. O Brasil possui a maior floresta tropical do mundo. Durante décadas, e especialmente sob os governos do PT, a ideia de nação brasileira estava intimamente ligada à defesa do meio ambiente e à proteção da Amazônia. Destinamos recursos significativos para combater o desmatamento, pondo em marcha uma operação de comando e controle para defender a Amazônia. Sem o exército, a polícia federal, as patrulhas verdes, as ONGs, não há luta efetiva contra o desmatamento. Cada discurso de conivência com a destruição do meio ambiente incentiva a poluição de rios, florestas e a violência contra os povos indígenas. Só conhecemos o Brasil sobrevoando a Amazônia, vendo suas imensidões de verde e azul. Enfim, quando daquele simpósio, dei ênfase à questão da educação, por três razões. O Brasil é um dos países mais desiguais do mundo. Somos o último país a abolir a escravidão, após 350 anos de existência desse sistema. Nossos governos se engajaram na redução das desigualdades: 36 milhões de pessoas foram retiradas da pobreza graças ao programa Bolsa Família. No final do meu mandato, o Brasil não estava mais no mapa da fome da ONU. Sabíamos que isso não bastava, pois não basta garantir bons salários, como fizemos, para reduzir as desigualdades. Para sustentar a luta contra as desigualdades e manter os ganhos alcançados, é essencial garantir à população excluída uma educação de qualidade. Se você deseja entrar na economia do conhecimento, o país deve promover as ciências básicas, tecnologias, pesquisa e inovação fornecidas pelas universidades federais. Mas o governo Bolsonaro quer privatizar a universidade pública federal, a que dá aos pobres acesso à educação. No último ano do meu mandato, 37% dos estudantes foram os primeiros membros de sua família a acessar o ensino superior. Privatizar universidades é um crime para o futuro do país. Terceira razão: sem cultura, um país não tem fundamento. Sem cultura, não há cidadania. Sem cidadania, não há democracia.

Jair Bolsonaro é um admirador do presidente dos EUA, Donald Trump, e privilegia as relações com Washington. Essa posição contrasta com seus mandatos e com o de seu antecessor, Lula, durante os quais vocês enfatizaram o multilateralismo. Quais são as consequências dessa aproximação com a principal potência do mundo?

Gosto de lembrar que o golpe de Estado parlamentar que me derrubou em 2016 tinha um objetivo: inserir o Brasil no neoliberalismo nos planos social, econômico e geopolítico. O neoliberalismo e o neofascismo são irmãos siameses. Durante nossos governos, o Brasil deixou de ser a décima segunda potência mundial para ser a sétima. Sempre favorecemos a ampliação das estruturas econômicas. Para nós, o multilateralismo foi fundamental porque mente este leva em conta a diversidade do mundo. Para nós, não era necessário nos vincularmos a nenhuma potência desenvolvida, menos ainda a essa submissão tradicional aos Estados Unidos. Priorizamos a América Latina, nossos países irmãos. Aceleramos nossas relações com a África, assumindo nossa identidade negra, já que o Brasil é a segunda naçãom maior população negra, depois da Nigéria. Participamos da criação do Brics. Estabelecemos relações de igualdade com o Japão, a União Europeia, os Estados Unidos. Ninguém respeita um país que se inclina perante outro. Ninguém perdoará quem, em nome de interesses estrangeiros, prejudicar interesses nacionais. Transferir a embaixada do Brasil para Jerusalém é desastroso para nossas relações com os países do Oriente Médio e para nossa posição de defender a existência de duas nações: Israel e Palestina. Tratar com desprezo nosso parceiro argentino é inadmissível. Acreditar que em um mundo tão complexo não conseguimos desenvolver relações harmoniosas com muitos países, e estou pensando particularmente na China, também é um erro grave. Não podemos “tratar brutalmente a Bolívia e falar com delicadeza com os Estados Unidos”, segundo a frase do grande compositor brasileiro Chico Buarque.

O site The Intercept revelou a troca de mensagens entre o juiz Sergio Moro, agora ministro da Justiça, e magistrados encarregados da Operação Lava Jato. Ficou demonstrado que Lula foi condenado por razões políticas e jurídicas. Como a Senhora explica que o necessário combate à corrupção se tornou uma alavanca da desestabilização política?

Após o golpe que me tirou do poder, foi necessário prender Lula para que Jair Bolsonaro vencesse as eleições presidenciais. Lula foi até mesmo impedido de se manifestar. Até recentemente, ele não podia dar entrevistas porque, se falasse, teria ajudado o candidato do PT, Fernando Haddad, a obter votos. Também assistimos à criação de um clima de ódio, de mentiras favoráveis ​​aos golpistas. A operação Lava Jato de combate à corrupção foi a principal ferramenta contra o inimigo. O “lawfare” consiste em usar a lei para destruir cidadãos, mas também candidatos. Sou totalmente a favor da luta contra a corrupção e o demonstrei durante o meu último mandato. Mas a Operação Lava Jato se tornou um instrumento político para impedir qualquer possibilidade de a esquerda manter o poder e retornar ao poder. As revelações do Intercept Brasil têm demonstrado isso. O juiz Sergio Moro não foi imparcial. Ele agiu a favor da acusação. Ele fez acusações contra Lula quando não tinha provas. Ele incitou testemunhos contra Lul. Ele pressionou o Supremo Tribunal Federal a utilizar gravações privadas de conversas entre Lula e eu, sabendo que não tinha permissão para isso. Ele tentou demonstrar que eu estava protegendo Lula. Ele instou a Suprema Corte a adotar uma atitude incorreta.

Apesar dessas revelações, por que Lula ainda está na prisão?

Lula permanece na prisão porque, se ele sair, isto mudará a atual correlação de forças. Lula representa a luta pela democracia. Representa a ideia de que outro Brasil é possível, que outro governo pode existir. Um governo que teria consideração pelos movimentos sociais, pelas organizações de mulheres e negros. Um governo que apoiaria as causas sociais, democráticas, e também as relacionadas à soberania, preservando nossos recursos econômicos, ambientais e a defesa da educação.

A chamada lei de “combate às organizações criminosas” tem dois artigos importantes. Um protege mais o corruptor do que os corruptos. O outro privilegia a delação premiada. O ministro da Justiça, que foi juiz quando sentenciou Lula, usou essa lei, que precisava ser alterada. É uma arma de destruição política e não uma arma de justiça. Esse recurso à justiça agora é uma prática comum em toda a América Latina. Agora é difícil manter as acusações contra Lula. Mas eles o mantêm na prisão. Do meu ponto de vista, esta situação é reveladora da crise que a justiça no Brasil está passando. A operação Lava Jato causou a destruição de um dos cimentos da democracia. Todos são iguais perante a lei. É a base de qualquer Constituição. Se é possível condenar e manter na prisão um ex-presidente que tem a liderança de Lula, então tudo é possível. A situação é muito crítica. Daí a importância da solidariedade.

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